/A mulher, de Lacan, que não existe

Jorge Forbes

O que Lacan sabia das mulheres? É a pergunta, em título, do Colóquio de Miami, em junho de 2013.

Nós todos conhecemos a resposta, Lacan a deu inúmeras vezes nos últimos anos de seu ensino. Ele a sintetizou em quatro palavras.

Lacan sabia das mulheres que: A MULHER NÃO EXISTE.

O que está condensado nessa oração aforismática é uma radical revolução no laço social, pois aponta a uma mudança de paradigma com implicações fundamentais na clínica e na vida em geral da pós-modernidade. É a isso que vou me dedicar a analisar nesse breve artigo:

a. como a mulher era vista;

b. o que há de novo quando a mulher não existe;

c. a possibilidade de um novo amor: a ressonância;

d. a segunda clínica: a consequência;

e. “a mulher de Lacan e a mulher de hoje”, tema dessa mesa.

Como a mulher sempre foi habitualmente vista?*

Começou como sempre, no começo. No Gênesis, quando Deus diz à mulher que levara o homem a comer o que não devia: “Multiplicarei teus trabalhos e misérias em tua gravidez; com dor parirás os filhos e estarás sob a lei de teu marido, e ele te dominará”.

         De lá até aqui, numa longa e inacabada história, a lista de impropriedades sobre a mulher só fez crescer. Os autores, paradoxalmente, são da melhor qualidade. Senão, vejamos.

         “Uma mulher estéril deve ser substituída no oitavo ano; aquela que perdeu todos os filhos, no décimo; a que só dá luz a filhas, no décimo primeiro; aquela que é azeda, imediatamente” (Código de Manu, século XIII A.C.).

        “A mulher é má. Cada vez que tiver ocasião, toda mulher pecará” (Buda, 600 A.C.). 

        “As mulheres, os escravos e os estrangeiros não são cidadãos” (Péricles, 450 A.C.).

        Eurípedes, o dramaturgo, na mesma época: “Os melhores adornos de uma mulher são o silêncio e a modéstia”.

        Um pouco depois, o pai da lógica, Aristóteles, saía-se com esta: “A mulher é por natureza inferior ao homem; deve, pois, obedecer… O escravo não tem vontade; a criança tem, mas incompleta; a mulher tem, mas impotente”.

        “A mulher deve aprender em silêncio, com plena submissão. Não consinto que a mulher ensine nem domine o marido, apenas que se mantenha em silêncio” (São Paulo, século I).

        “Os homens são superiores às mulheres, porque Deus lhes outorgou a preeminência sobre elas. Os maridos que sofram desobediência de suas esposas podem castigá-las: deixá-las sozinhas em seus leitos e até mesmo golpeá-las” (Maomé, século VII).

        “Para a boa ordem da família humana, uns devem ser governados por outros mais sábios do que eles; em decorrência, a mulher, mais débil em vigor da alma e força corporal, está sujeita por natureza ao homem, em quem a razão predomina. O pai há de ser mais amado do que a mãe e merecerá maior respeito, porque a sua concepção é ativa, e a mãe simplesmente passiva e material” (São Tomás de Aquino, século XIII).

        “Você não sabe que sou mulher? Quando penso, tenho de falar” (Shakespeare, século XVII).

         “Ainda que o homem e a mulher sejam duas metades, não são nem podem ser iguais. Há uma metade principal e outra metade subalterna: a primeira manda e a segunda obedece” (Molière, século XVII).

        “Uma mulher amavelmente estúpida é uma bendição do céu” (Voltaire, século XVIII).

        “A mulher pode, naturalmente, receber educação, porém, sua mente não é adequada às ciências mais elevadas, à filosofia e a algumas artes” (Hegel, século XIX).

        “Todas as mulheres acabam sendo como suas mães: essa é a tragédia” (Oscar Wilde; século XIX).

        “… de quem, de fato, aprendemos a volúpia, o afeminamento, a frivolidade total, e outros muitos vícios, senão da mulher? Quem é o responsável por perdermos tantos sentimentos inerentes a nossa natureza, como o valor, a fortaleza, a prudência, a equidade e tantos outros, senão a mulher?” (Tolstoi, século XIX).

        “A mulher parece resolvida a manter a espécie dentro de limites medíocres, a procurar que o homem não chegue nunca a ser semideus” (Ortega y Gasset, século XX).

        Nosso contemporâneo, Elias Canetti, búlgaro, Prêmio Nobel de Literatura de 1981: “Sua confusão era tal que começou a piorar mentalmente, como uma mulher”.

        Finalmente, fora da ordem histórica, o epitáfio que o poeta inglês John Donne (século XVII) inscreveu na tumba de sua esposa: “Enquanto você repousa, eu descanso”.

        Saltando de século em século, do início da civilização até hoje, por meio desses flashes pinçados ao acaso, vemos uma impropriedade comum no tratamento da mulher, um conjunto de desaforos, literalmente: um conjunto de “fora de lugares”. Historiadores, filósofos, teólogos, dramaturgos, políticos,
enfim, a inteligência, os que pensam, pensam muito mal a mulher. Razões culturais, sim, não há dúvida, mas o que provoca essa quase desrazão cultural?

        A mulher não existe quer dizer que falta à civilização, à cultura, um nome apropriado à satisfação feminina, à essência da mulher. Quando se tenta classificá-la, como vimos, é um desastre, acaba-se por degradá-la, mudar de grau. É diferente do homem que, este sim, encontra conforto nos braços da cultura e aí dormiria em berço esplêndido se não fosse a mulher acordá-lo de seu sono narcísico e homossexual da civilização, de tempos em tempos.

        O homem adora estar no mundo, na ordem unida; quanto mais todos forem iguais, melhor. O exército, a igreja e as legiões de executivos são bons exemplos da vontade de ser uniforme: todos de farda, de batina, de terno cinza, gravata escura, sapato preto, no máximo, marrom.

        Se você elogia um homem, tipo: “Você é inteligente”, ele fica contente e, se nesse elogio se acrescenta uma comparação com outro homem – como, por exemplo, “Você é inteligente como Churchill”, tanto melhor. Já as mulheres questionam o coletivo e a ordem unida. O elogio a uma mulher há de ser específico. Jamais diga, por exemplo: “Você é sensual como Gloria Estefan, pois se arrisca a ouvir: “O quê? Aquela cubana, de Miami, cantora de salsa?”. Melhor restringir o elogio, tal como: “Você é de uma sensualidade jamais vista”.

        Pois bem, seja para homens ou para mulheres, uma análise se propõe a escutar e a inventar um nome para o que se exclui da linguagem; daí dizer, com Lacan, que uma análise deve ser conduzida ao território da inexistência da mulher, além do Édipo, lembrando que “complexo de Édipo” é a maneira da psicanálise conceituar a articulação do sujeito com a cultura.

Ir além do Édipo é forçar a palavra onde normalmente nada poderia ser dito. Lembremos do final do Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein: “Do que não se pode falar, melhor é calar-se”. Contrariamente a essa assertiva do filósofo, a psicanálise insiste no mais além, convida ao excesso: onde nada pode ser dito, tal como faz o poeta, há de ser inventado um significante novo.

Inventar um significante novo e se responsabilizar por sua passagem no mundo. Invenção e responsabilidade são dois movimentos fundamentais da clínica do sujeito da pós-modernidade, a segunda clínica de Jacques Lacan. Nesta, onde na primeira se buscava o sentido a mais, aqui o que importa é a consequência. Nada a esperar que uma mulher venha a existir. É por que ela não existe que podemos inventá-la e inventar-nos.

Essa série de impropérios sobre a mulher, que listei, é sinal de um tempo em que a norma era masculina. Muito tempo, dois mil anos. Tempo no qual o amor, para voltar ao tema referido na primeira mesa, se realizava sempre em nome de um bem maior: a família, a religião, a tradição etc. Hoje, no novo amor da pós-modernidade, se estou com alguém é porque eu quero, sem justificativa outra, logo é por minha conta e risco. E não há como degradar uma mulher, posto que ela não existe.

A clínica mudou, o mundo mudou também. Seremos capazes de viver esse mundo da ressonância, não da compreensão, na medida em que suportarmos efetivamente o que Lacan sabia das mulheres, ou seja, que ela não existe. Mais que nunca, nos novos tempos da globalização, a mulher de Lacan é a mulher de hoje.

                                                          

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*Nota: retomo aqui, em parte, o que desenvolvi em artigo anterior: “A mulher e o analista, fora da civilização.”, publicado em livro por mim organizado: “Psicanálise: problemas ao feminino”, artigo que pode ser lido em: http://migre.me/eZqbq

 

 

                                                                  Miami, 2 de junho de 2013