/Ação do Real – Carta ao Presidente Lula

Jorge Forbes

(À revista Opção Lacaniana – n. 38 -, por seu décimo aniversário, em dezembro de 2003)

Dez anos de Opção Lacaniana são para festejar. É raro uma revista manter-se assídua e coerente por tanto tempo.

Algumas vezes estive nestas páginas e agradeço o convite para escrever um dos editoriais deste número especial.

Pedem-me que fale do futuro da psicanálise. É típico de quem tem dez anos. Em 1996, também Jacques-Alain Miller me convidou para refletir sobre as mudanças da psicanálise no encerramento do Encontro Internacional do Campo Freudiano, em Buenos Aires. A essa reflexão dei o nome de “Por um aggiornamento”. Voltei àquele texto ao receber o estímulo para este. Pensava em continuá-lo. Mas, não! O que ali eu previa prefiro, hoje, demonstrar.

Recentemente, por razões que a leitura esclarecerá, ocorreu-me escrever e enviar uma carta à primeira-dama e ao presidente do Brasil.

Ali sintetizo pontos que têm me preocupado sobre a ação do Real da psicanálise: de que maneira captar o gozo desbussolado da globalização? Como romper com o maniqueísmo da era industrial que dividia os laços sociais em modelos bipolares? Que lugar a honra e o novo luxo virão a ocupar? Como encontrar novas soluções a novos sintomas sem cair no futuro do passado? Enfim, como agir em um mundo em ruptura com o Iluminismo?

Foram esses aspectos que me nortearam na escrita da carta.

Não se trata de uma carta aberta, uma vez que foi enviada pessoalmente, mas também não é totalmente íntima, pois, seu post scriptum anunciava que ela seria publicada no número da revista Élucidation que acaba de ser lançada.

Parabéns, Opção Lacaniana.

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São Paulo, 11 de agosto de 2003.

Cara Dona Marisa, Caro Presidente Lula,

Amigos nossos, em comum, sugeriram que eu escrevesse uma carta para vocês, relatando – breve, clara e diretamente – o cerne das opiniões que tenho manifestado na imprensa, em especial sobre o Senhor, Presidente, e um pouco, também, sobre recentes episódios ocorridos com Dona Marisa. Gostei da idéia, aqui a desenvolvo.

Minha interpretação, em síntese, é que o “Presidente Lula” representa um novo tipo de líder de vanguarda, próprio à globalização e de tão novo, tão inusitado e surpreendente que é, a maior parte das pessoas, mesmo as mais próximas e mais queridas, acabam tentando encaixá-lo em velhos modelos; umas por medo de se perderem, outras por não suportarem a surpresa.

Façamos uma análise do momento da posse e de alguns episódios logo em seguida.

Posse. O Rolls-Royce abria passagem com dificuldade em meio à multidão comprimida no eixo monumental. O Presidente estava literalmente nos braços do povo. Era puro carinho, mas chegou-se a temer, se não por sua segurança, por sua integridade física, à mercê de admiradores entusiasmados.

A entrada no plenário da Câmara foi uma continuação da festa popular: deputados e senadores repetiam a euforia das calçadas, todos queriam chegar perto, tocá-lo, trocar um olhar. O Presidente sobe à tribuna, toma seu lugar – o coral do legislativo canta o estribilho da campanha – o clima é próximo ao carnavalesco. O Senhor, Presidente, toma o microfone e inicia dizendo: “Gente, vamos quebrar o protocolo, mas nem tanto”.

Quanta coisa em uma frase quase banal. Protocolo e não protocolo, regra e emoção; nessa frase já se condensava o novo do Lula-líder, brincado no Lulinha-paz-e-amor da campanha, verdadeiro em uma nova forma de ação política: regra, ou razão, com emoção. Não qualquer emoção: foi exemplar naquele momento o Senhor manter-se sóbrio e inflexível ao canto piegas de um político que em seu discurso lhe propunha uma falsa identidade de origem comum; em seguida, no parlatório do Planalto, o Senhor, em rede mundial, elogiou carinhosamente a elegância e o charme de sua mulher: “- Marisa, como você está bonita…”.

Até então, no Brasil, o afeto ficava nos políticos da direita, um “mau” afeto, paternalista, presente em Antonio Carlos Magalhães e Paulo Maluf, para citar os mais evidentes. Os políticos de esquerda sempre entenderam o afeto como perigoso, enganoso. Não queriam que um eleitor correspondesse a um sorriso, mas sim a um gráfico cheio de índices e tabelas, escudo de sobriedade e de objetividade. O afeto no Senhor, Presidente, não é mau porque não é paternalista, e muito menos enganoso, falso ou sedutor; o seu afeto é novo em concordância com a nova era em que entramos – a globalização – era pós-moderna, que desiste de fazer da razão o elemento privilegiado nas tomadas de decisão. Toda razão, por melhor e mais tempo pensada é incompleta, o que obriga que não haja decisão sem risco, sem afeto, complementar a uma razão impossível. E isso o Senhor faz à grande, Presidente.

Tenho dúvidas se seus companheiros de partido o compreendem; tenho dúvidas se a imprensa, se os jornalistas o compreendem. Penso que não. Seus companheiros não passam um dia sem lhe reclamar o cumprimento, termo a termo, da cartilha partidária; a imprensa fica à espreita de uma tese medíocre e popularesca: Lula, operário metalúrgico, terá dificuldades com o ritual do cargo.

Ocorreu poucos dias depois da posse: um jornal de São Paulo, tendo bisbilhotado através das árvores da Granja do Torto, publicou na primeira página uma fotografia: o Senhor, de camiseta, calção e chuteiras, num futebolzinho com churrasco, na Granja do Torto. A idéia era dizer que o Senhor só suportaria Brasília se recriasse em algum canto a sua São Bernardo de adoção. Especulava-se se o Senhor iria morar no Palácio da Alvorada, ou se, intimidado com a opulência, preferiria a simplicidade do “Torto”. Que bela surpresa vocês terem mudado para o Alvorada um dia antes do previsto. Calou os oráculos catingueiros, embaralhou as expectativas reacionárias.

O último exemplo que extraio das primeiras semanas do governo é a ida, em seqüência, a Porto Alegre e a Davos. Aí, fixou-se o que chamaria política do impossível, para diferenciar da política da potência. Impossível porque não havia nenhum elemento que justificasse essa peculiar união a não ser a vontade e a ousadia, Presidente. O elo era, e foi, o seu corpo, a sua presença que arriscou desagradar a gregos e troianos. É com essa política que penso que o Senhor está inaugurando uma nova forma de liderança. É uma lição como disse à época o editorial do “Le Monde” chamando-o de “Professor Lula” e dando ao editorial o título “La leçon de Lula”.

Ao contrário do impossível, persistem lideres no velho modelo da potência: a minha impotência hoje é a minha potência de amanhã; destroem-me dois prédios, arraso um país.

Senhor Presidente, sua atitude de vanguarda, como dizia, pode não ser compreendida por seus correligionários e, parodiando Ruy, o retorno de suas dúvidas sobre o Senhor pode fazê-lo duvidar de si próprio. Talvez até já tenha ocorrido.

Uma palavra sobre as jóias emprestadas à Primeira Dama. A manipulação maniqueísta de uma parte da imprensa foi clara. Moralistas de plantão começaram a defender a idéia do constrangimento, que isso poderia ser uma quase–corrupção. Poucos dias depois, Dona Marisa, a Senhora devolveu as jóias. Se tivesse tido ocasião de lhe falar, teria mencionado um ditado que transformei a partir de Disraeli: “Não se explique, não se justifique”. Essa máxima não convida à tirania, nem à arrogância. Diz, simplesmente, do preço que se paga quando se ousa sair do esperado da ordem unida. Carlos Drummond de Andrade, no prefácio de suas obras completas, relata que, se não fosse por poucos amigos que admirava, jamais teria publicado um poema que repete sete vezes: “tem uma pedra no meio do caminho”.

A questão das jóias emprestadas foi mais uma que acabou sendo julgada com o velho metro de épocas passadas.

Os comentaristas talvez não saibam que o luxo só começou a ser visto como algo fútil e superficial a partir da Revolução Francesa, ou seja, há duzentos e poucos anos. Até então, desde o período Paleolítico, o luxo era a marca da ligação divina, do homem com seu deus. Esse aspecto, reinterpretado para a nossa época, tende a voltar: o luxo – não aquele exclusivo pelo preço ou pela raridade – mas o novo luxo customizado retornará como expressão de identidade. Não é nem tolo, nem superficial, o vestuário da Primeira Dama. É de essência, logo, essencial. O brilho de sua presença, na recente viagem à Espanha, o testemunha.

Concluindo, cara Dona Marisa e caro Presidente, o Brasil e, por que não dizê-lo, o mundo, vivem uma experiência de expectativa única através de vocês. O Brasil é um país do Terceiro Mundo apenas quando a norma for o desempenho econômico, expresso em índices e tabelas. Mas, se o paradigma econômico ceder lugar ao paradigma do desejo, da invenção, da ousadia, aí, sim, estará bem melhor na fotografia.

Lula não é uma novidade por ser um operário que chegou à presidência, houve outros; nem por não ter estudos universitários, houve outros; a novidade Lula é a junção singular da razão e do afeto, somada a uma ousadia entusiasmada e criativa. Será esse o modelo do líder próprio à terceira era? Pode ser que sim, cabe-nos a feliz chance de prová-lo.

“Não se explique, não se justifique”; o que vale é vocês manterem viva uma cota de certeza inexplicável nas suas ações.

Lula não se explica, se mostra. É singular o Presidente do Brasil.

Com respeito e amizade,

Jorge Forbes

P.S. A revista francesa Élucidation pede-me um artigo sobre o Brasil sob a nova presidência. Tomarei a liberdade de enviar-lhes uma cópia desta carta.

NR: a primeira-dama e o presidente responderam à carta poucos dias depois de tê-la recebido, comentando sobre as impressões subjetivas e políticas que a leitura lhes causou.