/Bioética e Biotecnologia – uma questão de limite

Jorge Forbes

Bioética e biotecnologia se
complementam: a bioética diz respeito à regulação daquilo que a biotecnologia ajuda
a fabricar.

A bioética é ponto central dos
debates atuais. Aborto, Clonagem, Eutanásia, Transgênicos, Células-tronco, são
alguns dos principais aspectos que provocam novas discussões éticas sobre a
vida. Se isso ocorre é devido ao desenvolvimento da biotecnologia, nome que se
dá às aplicações de novas tecnologias sobre os seres vivos.

A Biologia representa para o
século XXI o que a Física representou para o século XX. Seus avanços são tão
grandes e rápidos que é quase impossível o acompanhamento do que está
ocorrendo. – “É como se quiséssemos encher um copo d’água nas Cachoeiras do
Iguaçu”, descreveu, alguém, figurativamente.

Esses avanços biotecnológicos
somados à angústia humana de evitar o sofrimento e a morte, põem em cheque as
maneiras que estávamos acostumados a decidir sobre o certo e o errado, o pode e
o não pode, o desejável e o condenável.

Tomemos um exemplo que provocou
um grande debate ético, referente a algo que hoje se pratica legalmente e que
ontem era não só proibido como impensável, o chamado “Saviour Sibling”, o
“Irmão Salvador”. Trata-se de provocar o nascimento de uma criança com o
objetivo primordial de fazê-la doadora, nesse caso, de sangue do cordão
umbilical que sirva a seu irmão já existente para se curar de uma doença
sanguínea mortal. No sangue do cordão estão as células-tronco hematopoiéticas a
serem transplantadas. Para que isso se dê, a concepção dessa criança tem que
ser in vitro, pois o embrião deve ser previamente estudado, ao menos, sob dois
aspectos fundamentais: ser compatível com o irmão doente e não ser herdeiro da
mesma doença.

Uma das primeiras vezes que isso
se realizou, quando ainda não era legalizado, foi feito pelo geneticista
norte-americano Mark Hughes, que se viu convencido a fazer o questionável
procedimento, por um pai, que, aflito, veementemente lhe disse: – “Enquanto
vocês, cientistas, ficam aí em volta de uma mesa pensando se vão ou não me
ajudar a salvar minha filha, um monte de casais têm filhos por razões as mais diversas,
como melhorar o casamento ou garantir uma herança”. Hughes se convenceu e
realizou o procedimento.

Esse tipo de história se repete
todos os dias nos centros mundiais de pesquisas genéticas. O que é interessante
para o psicanalista é saber de que forma pode participar desse momento. A
resposta, a meu ver, no que tange o psicanalista, é que estamos vivendo uma
crise do limite. Até hoje, o que nós poderíamos querer fazer não era possível
por falta de meios. Agora, vivemos o avesso disso, podemos fazer muito mais do
que queremos. A tecnologia não mais nos limita e ela avança por ela mesma, indiferente
às nossas necessidades, tema amplamente criticado por Heidegger. Idosos sofrem
com o prolongamento artificial de suas vidas; pessoas são vigiadas por exames
de DNA extraído da xícara de seu café; alimentos são alterados etc, etc.

Na falta de um limite externo que
sirva de parâmetro às nossas vontades, o que podemos esperar? A resposta mais
imediata é que veremos surgir milhares de comitês de ética, instâncias
reguladoras que tentarão disciplinar as nossas vidas.  Suas eficácias são questionáveis. Sempre
haverá quem por ambição pessoal, curiosidade, ou sensibilizado por um drama
humano, como o relatado, dará mais um passo, arriscando a ir do drama à
tragédia.

A psicanálise decorrente do
ensino de Jacques Lacan tem melhor resposta. É fundamental que o psicanalista
do século XXI trate da questão da quebra do limite da pós-modernidade, tanto no
espaço clínico de seu consultório, quanto na sua participação no laço social,
como analista cidadão. Na clínica, são os desenvolvimentos de Lacan de sua “segunda
clínica”, a clínica do Real, que permitem ao analisando encontrar uma nova
referência para a sua vida que não seja a expectativa do Outro sobre ele.
Quando ele cansa de se queixar, de esperar que o Outro lhe dê o que ele quer –
o que em uma época de explosão tecnológica é ainda mais presente e perigoso – o
analisando muda de paradigma e descobre que ninguém sabe o que ele deseja, nem
ele, e, por conseguinte cabe a ele e a mais ninguém inventar uma resposta
singular a seu desejo e se responsabilizar por ela. Invenção e
Responsabilidade, dois termos cruciais para uma nova ética apropriada a esses
tempos.

O que vale para o consultório
pode ser transportado para o espaço social, uma vez que a ética deve ser a
mesma, sua implementação é que é diferente. Não vamos fazer análises coletivas
e nem da coletividade, mas os psicanalistas podem colaborar intensamente nos
debates de uma era em tudo diferente das anteriores e legitimar novas formas de
satisfação no laço social. Uma era em que pela primeira vez o homem não
responde a padrões orientadores externos e verticais: seja a natureza, a
religião ou a razão. Frente ao desbussolamento causado pela supremacia de um
Real sem sentido, temos visto movimentos reacionários de recuo para o conforto
plácido das neo-religiões ou dos livros de autoajuda, duas faces do mesmo
sintoma. Também a sociedade como um todo deve “aprender” a viver em um novo
paradigma. Sua organização não mais será dada pelos grandes ideais, como
outrora, mas por pequenos gestos de convívio com os mais próximos, daqueles que
servirão a cada pessoa de testagem amorosa – é o nome que se impõe – desse
singular arbitrário e íntimo, pois é necessário que o que se inventa como
resposta a seu desejo, seja validado na vida de relação. Por esse caminho, os
excessos tecnológicos da biotecnologia serão motivos de desprezo e não de
apreço, em uma bioética condizente ao humano. A verificar.

Artigo publicado em Scilicet:
Um real para o século XXI
. IX Congresso da Associação Mundial
de Psicanálise. Belo Horizonte: Scriptum e EBP, 2014, p. 49-51.