/Fazer-se tolo de um real: o que é crer no sinthoma?

 

. nano-psicanálise .  

Jorge Forbes

Comparo o estágio que atingimos
na Psicanálise à revolução tecnológica pela qual passamos. Há trezentos anos a
revolução industrial foi possível graças ao domínio do milímetro, ou seja, do milésimo
do metro. Em seguida, tivemos a revolução do computador, sendo que a fabricação
do chip é devedora do fato de dominarmos o
mícron, milésimo do milímetro, milionésimo do metro. Hoje, estamos frente a
“nano” revolução, pois aprendemos a operar o milionésimo do milímetro, o
bilionésimo do metro. O que seria o equivalente no caminho da psicanálise, a
“nano-psicanálise”?

A nanotecnologia é uma das quatro
grandes revoluções que nos atinge, junto à biotecnologia, informática e cognitividade.
As quatro iniciais dessas mudanças formam a sigla NBIC que será cada vez mais
conhecida e discutida. Essas mudanças estão na base das atuais e polêmicas
reflexões sobre o transhumanismo.
Surge a pergunta: será o homem daqui a trinta anos, ainda um homem como o
conhecemos hoje? Quando tiver implantado em seu cérebro a memória do Google;
quando sua visão além de ser corrigida for aumentada, para uma visão
telescópica; quando a perspectiva de vida for de 150 anos?  Essa é uma questão fundamental à qual não se pode
esquivar uma resposta.
Adiantamos uma ideia a esse respeito: os avanços científicos não serão capazes
de dar sentido ao real que nos constitui; as expressões do humano variarão surpreendentemente,
mas não a sua qualidade constitutiva.  

Enquanto isso, do lado da psicanálise,
o avanço é exatamente o fato de que aprendemos a operar o Real sem sentido.
Jacques-Alain Miller lista na apresentação do tema desse Congresso alguns dos
termos dessa operação do Real, na chamada segunda clínica de Lacan. São eles:
alíngua, sinthoma, parlêtre, corpo falante e
gozo opaco
, termos que se confrontam com os da primeira clínica, correspondendo
na mesma ordem a:
linguagem, sintoma,
inconsciente, corpo e gozo com sentido.

No nível nânico do Real, como
propus, não sobrevive a psicopatologia estrutural que tão bem dividia: psicose,
perversão e neurose. Nesse novo nível ínfimo caem os limites estruturais da
ordem paterna e “somos todos loucos”, sendo que o que nos resta fazer é evitar
o delírio ou a débil mentalidade referida
por Miller, em sua conhecida apresentação do tema desse congresso – e de onde
partiu o convite a esta mesa. Diz ele: – “
Da debilidade ao delírio, a consequência é
boa. A única via que se abre mais além é, para o falasser, fazer-se tolo [dupe]
de um real, quer dizer, montar um discurso no qual os semblantes obstringem um
real, um real no qual se crer sem a ele aderir, um real que não tem sentido,
indiferente ao sentido e que só pode ser aquilo que ele é. A debilidade é, ao
contrário, a tapeação [duperie] do possível. Ser tolo, tapeado por um real – o
que ostento – é a única lucidez aberta ao corpo falante para se orientar. Debilidade
– delírio – tapeação, esta é a trilogia de ferro que repercute o nó do
imaginário, do simbólico e do real
”.

Daí decorre a atualidade do
tratamento clínico: “Fazer-se tolo de um real”. Fazer-se tolo é o avesso de se
fazer de esperto, de tudo conhecer e ter sua ação garantida por esse
conhecimento. Fazer-se tolo de um Real corresponde à diminuição da esperança de
tudo saber ante as escolhas ou decisões e, em decorrência, leva ao aumento da
aposta. Essa atitude exige dois compromissos éticos fundamentais: Invenção e
Responsabilidade, que em português compõem a sigla “IR”, de interessante
polissemia. Invenção de uma resposta singular ao furo do sentido no Real e
Responsabilidade de fazer essa resposta singular passar no mundo. A invenção de
uma resposta corresponderia ao escabelo, como temos trabalhado na AMP; a
responsabilidade de passar no mundo equivaleria ao momento do passe. Lembro
Jacques-Alain Miller, sempre no mesmo texto já citado: – “
O momento em que a assistência está satisfeita faz parte do passe.
Pode-se até dizer que o passe se realiza aí
”. Invenção e Responsabilidade são
movimentos semelhantes ao do artista. Van Gogh viu girassóis que só ele viu, e
hoje também os vemos. Chico Buarque ouviu a banda que só ele ouviu, e hoje
também a ouvimos. Jorge Amado sentiu uma Bahia que só ele sentiu, e hoje também
a sentimos. A psicanálise provê ética parecida à do artista, o que não quer
dizer, infelizmente, que outorgue talento ao analisando.

A segunda parte do título dessas
reflexões solicitadas – o que é crer no sinthoma? – se articula com a primeira.
Na época do sintoma decifrável, do inconsciente estruturado como uma linguagem,
uma pessoa compreendia o seu sintoma. Era o tempo do Freud explica. Hoje, no
sinthoma real, escrito com “h”, como o elaborou Lacan, se trata, a cada um, de crer e não de compreender
o seu sintoma. É a época do Freud implica. E a pessoa crê no sinthoma sem
aderência, como referido, dado que é guiada pelos sinais da opacidade de seu
gozo e não pela clareza. Vale aqui lembrar o aforismo de Lacan que o máximo de verdade que
podemos atingir é a “verdade mentirosa”. E porque a verdade é mentirosa é que o
sujeito se vê nela implicado, se não seria uma verdade fria e objetiva,
dessubjetivada.

A resposta que uma pessoa
consegue construir em análise a esta opacidade gozosa, a este estranho mim
mesmo (das Unheimliche, de Freud) tem que ser passada no mundo para fazer
sentido para a própria pessoa. Razão pela qual temos a necessidade nessa época,
mais que antes, de um dos outros, dos “pequenos outros” como diz o jargão, constituindo
um tipo de amor inédito, um “novo amor”, não intermediado por qualquer
verticalidade padronizada, por qualquer “grande outro”, como por exemplo: pai,
chefe, presidente, tal como ocorria para nossos antepassados.

Concluindo, arrisco-me propor
expandir essas apreciações para verificar o quanto esses avanços, dissemos,
“nano-científicos” da psicanálise, podem contribuir, além da clínica, também a
pensar as crises atuais da humanidade e, em particular, a brasileira. Essas
crises são possivelmente fruto do desbussolamento da passagem da modernidade
para a pós-modernidade, de TERRAUM para TERRADOIS, como temos chamado. A
desregulação dos padrões verticais das identidades tem levado a buscas
frenéticas de reestabelecimento de padrões rígidos que protejam da angústia do
mundo flexível. Temos um país em franca guerra civil de palavras, à caminho da
guerra física. Amigos se evitam para não brigar. Há um medo generalizado em dar
opinião e apanhar, convivendo com um estranho prazer agressivo. Nunca se
deletou tanto nas redes sociais, nem tanto se autocensurou. Dois campos
opinativos de tamanhos diferentes se confrontam, cada qual aferrado à sua
verdade que, de tão evidente para eles, os leva a acreditar que os outros são canalhas.
Mas, se como desenvolvemos, a melhor verdade é a mentirosa, não tem cabimento
tentar fazer que a morte do outro seja a prova de minha verdade, tornando-a
idealmente menos opaca e menos responsável. É necessário um novo paradigma para
a política sair desse impasse maniqueísta e desastroso. Esse paradigma já deve
existir e deve estar operando. A nós de nomeá-lo o quanto antes.

Rio de Janeiro, 26 de abril de 2016.
X Congresso da AMP.