/Fixões

Jorge Forbes

Súmula

Para explicar a plasticidade da identificação do humano é necessária uma teoria do significante que se contrapõe ao signo. Em algum lugar, o significante tem que se ancorar no Real para que haja um limite na articulação significante (desejo) e a possibilidade de uma identidade (gozo).
Esse ponto que faz limite, e que leva o sujeito a uma escolha forçada, é o ponto de fixão no Real.
Como na dança, ou na alavanca, é de um ponto fixo que se gera o movimento, nesse caso, as ficções.

1. O título

Nosso título pode provocar mal-entendido. Em uma primeira escuta a confusão com ‘ficções’ é quase inevitável. É um equívoco, no entanto, que mais pode colaborar pois, de imediato, põe em relação dois termos que falam do acesso à verdade, no percurso de uma análise, em dois momentos distintos. É disso que nos ocuparemos nesse trabalho: da distinção das ficções que suportam uma verdade completa, com as fixões enquanto ancoragem do sujeito no Real, produtoras de verdades incompletas, transmitidas em ficções criativas.
Deixemos provisoriamente assim: algo hermético: – nos forcemos a abrir.

2. O circo

“Que número você mais gosta no circo?” – Uns preferem o globo da morte, outros, os trapezistas, ou os palhaços, há também preferências pelos animais amestrados, pelos equilibristas, ginastas e mais. As opções são várias, todas ótimas. Triste mesmo é quem responde que não gosta de circo (bom sujeito não é…).
Esses vários “números” podem nos ajudar a exemplificar o número que cada qual interpreta na sua vida, tal qual uma musiquinha repetitiva e cansativa, da qual lança mão em momentos mais tensos.
Esses momentos são aqueles em que uma pessoa se vê ameaçada em sua identidade, logo surge um – “Sabe com quem está falando?” Exige-se que o outro aplauda o seu número, respeite seu número, dê passagem à sua interpretação.
Um número é aquilo que faz com que cada um tenha seu lugar no picadeiro, e, para não perdê-lo, é importante saber a hora de entrar, de se apresentar, de sair – quem sabe faz a hora…, canta o povo brasileiro, just in time, canta lá o americano.

Cada qual inventa um número. É claro que não é algo aleatório, segue uma ordem, aquela que é dada por aquilo que Freud denominou de Liebesbedingung – a condição do amor, as condições necessárias para que um amor se realize e que eu me veja representado, que eu me identifique.
Essa invenção amorosa é uma ficção. Sendo que a complementaridade absoluta é impossível, uma ficção é o que pode fazer todo daquilo que, necessariamente, é parcial. Uma vez que o Real é aquilo que mostra o impossível da complementação, temos que a ficção encobre a sua presença.

3. Freud e a ficção

O que acabamos de expor se relaciona, em certa medida, com a problemática que Freud levanta em 1908 em dois textos que podemos cotejar, a saber: Escritores criativos e devaneio e Romances familiares.
Freud, em Escritores criativos, está muito intrigado “em saber de que fontes esse estranho ser, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das quais, talvez, nem nos julgássemos capazes.1

Os escritores criativos, finalmente, têm a sua inspiração no mesmo local onde os “escritores não criativos”, os neuróticos do “romance familiar”2 , a buscam: no jogo infantil, na brincadeira de se inventar uma nova família, a mais bela história garantidora de uma identidade poderosa e feliz.

Freud lembra que “nas criações desses escritores um aspecto salienta-se de forma irrefutável: todos possuem um herói, centro do interesse, para quem o autor procura de todas as maneiras possíveis dirigir a nossa simpatia e que parece estar sob a proteção de uma Providência especial”3. E, mais para a frente, ao se referir ao despudor do escritor em sua ars poetica, conclui: “Talvez até grande parte desse efeito (liberador de tensões) seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha”4 .

Atenção, o fato de nos deleitarmos com os escritores não nos transforma num deles. Segue a questão de por que uns, ao contar uma história, são maçantes e outros, atraentes. Constatamos, imediatamente, que os narradores interessantes são aqueles que possibilitam aos leitores se encontrarem na história que lhes está sendo contada, a qual terá que ser suficientemente plástica para proporcionar essa abertura. Essa plasticidade será tanto mais eficiente quanto mais o sujeito se vir decididamente ancorado no Real, ali garantido, fixado, para dessa fixão poder contar várias histórias, ficções com personagens em aberto para o leitor.

4. O verdadeiro da verdade – o ponto onde a ficção se fixa

Uma pessoa que procura uma análise quer saber qual é sua verdadeira história, seu verdadeiro “romance familiar”. É como se cada um tivesse um quê de filho adotivo.
Cada qual, em meio às suas ficções, busca o aceso à própria verdade: o remédio que espera do analista na certeza de, em o recebendo, resolver seu sofrimento.
“Está claro que é atrás do verdadeiro que se corre, disse-lhes já que é o verdadeiro da verdade que se procura”5 .
A expressão de Lacan nos remete à discussão desse ponto delicado: o verdadeiro da verdade. De que maneira uma verdade se garante, como legitimar essa verdade, base de uma identificação almejada?

Tomemos como exemplo a diferença de falarmos em verdade e partir de uma posição do signo em contraposição à do significante.
Restringindo-nos a definir signo como aquilo que representa alguma coisa para alguém, podemos, simplificadamente, dizer por exemplo que os animais respondem a verdades sígnicas. Uma determinada pessoa, e não outra, aparece para um cachorro como seu dono6. Dificilmente esse animal faz erro de pessoa ou apresenta fenômenos de transferência. As posições sígnicas provêm verdades estáveis e rígidas. Um cachorro age sempre como um cachorro, um macaco como um macaco, um cavalo como um cavalo. Feliz ou infelizmente só o animal homem pode, sem muito espanto, fazer uma macaquice, uma cachorrada ou dar um coice. Buscando o verdadeiro da verdade desse lado das grandezas sígnicas, nisso só terá sucesso o obsessivo que faz com que o mundo pare, para que sua certeza fique bem plantada.

A verdadeira verdade e o seu verdadeiro devem ser buscados do lado do significante. A plasticidade das identificações humanas não é suportável na estabilidade sígnica; “nossa experiência nos mostra que os diferentes modos, os diferentes ângulos sob os quais somos levados a nos identificar como sujeitos, supõem o significante para articulá-lo”7 .

Como garantir uma verdade, quando operamos com o significante, é agora a nossa questão.
No nível sígnico ela é mais simples, pois aí a verdade se traduz por semelhança, por aparência; o dono do cachorro se parece consigo mesmo.
Esses critérios não são válidos quando estamos trabalhando com o significante. Aqui, para que algo seja verdadeiro, devo prová-lo não por aparência; um dos métodos mais usuais é a prova da verdade como se faz em lógica: sei que tal sentença é verdadeira se posso, a partir de dados axiomas, respeitando sua linguagem e suas regras de transformação, deduzi-la completamente.
Um paciente fala, livremente, como lhe pede a regra fundamental. Numa primeira aproximação, verdade seria tudo aquilo que adquire sentido face a um axioma estabelecido. Todas as falas ou todos os caminhos desembocam nesse axioma que é uma ficção estável.

Temos aqui, na psicanálise, um evidente paralelo com os métodos axiomáticos de prova da verdade utilizados em matemática.
Nossos problemas, e também os dos lógicos, não ficam por aí. A se estabilizar nesse nível, a verdade de um paciente só seria resolvida no universal – ou seja, numa ficção que serve a vários, globalizante. O particular de seu desejo não se resolve dessa maneira – exige que haja uma outra forma de se garantir – antes prefere uma fixão no Real a uma ficção universal.
“Eu me resolvo com o outro, mas nunca como o outro” pode ser uma máxima do ideal do analisando.
Enquanto isso na lógica, o que é que está ocorrendo? Também aí a verdade não se tranqüiliza de ser puramente axiomática.

Goldbach faz a seguinte conjectura: – “Todo número par é a soma de dois números primos.”
“Nós nunca encontramos um número par que não seja a soma de dois números primos, porém ninguém nunca pode demonstrar que essa conjectura de Goldbach se aplique sem exceção a todos os números pares. Esse é um exemplo de uma proposição aritmética que pode ser verdadeira, mas que, ao mesmo tempo, pode não ser deduzível dos axiomas da aritmética”.8

Imagino que todos reconheçam aí um dos clássicos exemplos do “teorema da incompletude” de Gödel. Como já chamamos a atenção em um trabalho anterior9, a importância dessa demonstração de Gödel para nós, analistas, é dupla: a) são possíveis sentenças verdadeiras não axiomatizáveis, e, ainda mais forte, b) não se trata de pensar que gerando novos axiomas poderei deduzir essas verdades; a criação de novos axiomas demonstra que sempre persistirão sentenças que podem ser verdadeiras embora não axiomatizáveis.
São as sentenças indecidíveis.

Cabe aqui uma pergunta aos lógicos, nossos colegas, – o que Gödel dizia em 1931 sobre as proposições formalmente indecidíveis é que poderia haver proposições verdadeiras, entre as indecidíveis, indecidíveis por não serem axiomatizáveis. Ele, no entanto, não nos diz como, a partir daí, decidir sobre esses indecidíveis. É essa a nossa pergunta: puderam os lógicos garantir, nesses posteriores 58 anos, uma verdade indiferente ao axioma?10
Para nós, a decisão de uma verdade além do axioma, ao qual chamamos ‘fantasma’, que é uma ficção, denomina-se ato analítico; uma fixão no Real. É o ponto onde a ficção se fixa.

5. Lacan e a fixão do Real

“Recorrer ao nãotodo, ao pelomenosum, quer dizer aos impasses da lógica, é, por mostrar como escapar das ficções da Mundanidade, fazer uma outra fixão do real: isto é, do impossível que o fixa pela estrutura da linguagem. E também é traçar o caminho por onde em cada discurso se depara o real com o qual ele se envolve, e despachar os mitos com os quais ele ordinariamente se supre”.11
Lacan dixit!

Espero que os quatros pontos até aqui desenvolvidos ajudem a suportar a densidade das articulações estabelecidas nesta frase de Lacan, entre as quais destaco:

Recorrer ao nãotodo, ao pelomenosum, aos impasses da lógica, é o que tentei explicitar através dos impasses da demonstração axiomática e o teorema da incompletude de Gödel. Há que se decidir no indecidível, escapando das ficções da mundanidade, dos números repetitivos do romance familiar.
Do possível, enquanto aquilo que se interpreta, que pode se escrever, há que se destacar uma outra fixão do real: isto é, do impossível que o toma pela estrutura da linguagem, e que ao fazê-lo, despacha os mitos (e os fantasmas) com os quais ele, ordinariamente, se supre.
Ao rigor desse parágrafo de Lacan em L’Étourdit vou antepor alguns de Pierre Rey, seu analisando. É como se dessa fixão, retornasse uma ficção.

6. O paciente de Lacan e sua ficção

Ouçamo-lo em suas próprias palavras:
“Nunca procurei saber quanto tempo iria durar o trabalho que eu empreendera sob sua tutela. No intervalo, se bem que meu estado civil tenha ficado com dez anos mais, eu me sentia mais moço. E também mais velho. Mistura curiosa, onde se acavalavam tempos de infância e de homem. Em minha relação com Lacan, as tensões tinham se pacificado. Não mais dramas. Sobrava só meu desejo de saber, que me arrastava, como nas Mil e Uma Noites, hora após hora, dia após dia, século após século. Entrementes, imperceptivelmente, modificaram-se meus centros de interesse. Eu não me arrependia de nada que eu vivera, mas seria incapaz de revivê-lo. Não mais gostava do que antes gostara, e estranhamente, agora que eles me metiam menos medo, conhecer-me melhor me tornara mais curioso dos outros, mais aberto, mais indulgente quanto à tolice – não há mal-entendidos, e sim, somente mal-entendedores.

Sabia eu também, pois ele não se perde nem perde o frescor, que só o talento é o verdadeiro poder.
Eu, igualmente, invertera certas proposições, cuja mentira social, o uso coletiva, educação e cultura, nos fazem pensar que é imutável sua ordem. Quero dizer, em vez de sujeitar meus desejos a meus meios, decidido a pagar o seu preço, eu havia preferido criar-me os meios de meus desejos – partir do desejo para multiplicar sua vida mais do que ajustar seus desejos ao limitado da vida. E ainda eu devia ter aprendido que a finalidade do desejo não é preencher a falta, mas pelo contrário, que a falta é a causa do desejo.

Sabendo disso, por que não tentar vivê-lo?
Excetuando-se raras concessões feitas à amizade, ao dever ou à necessidade, é excepcional que eu não esteja bem, lá onde estou. Por uma simples razão, se fosse o caso, eu já estaria em outro lugar.”12

7. Conclusão

A fixão do Real é o modulador das ficções. Antes de atingi-la, as ficções são repetições do mesmo, do romance familiar. Depois, valendo-nos de que a fixão do Real origina a repetição da diferença, dão-se as ficções criativas.
Isso é fundamental: a repetição da diferença, por ser sempre outra coisa, repetidamente diversa, diverte e cria. Deve ser a justa articulação de desejo e gozo.
Aqui, na fixão do Real, o número é destituído de significado. Torna-se só um indicador de um lugar numa série com seqüência;

– Agora você, o próximo!

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  • (1) FREUD, Sigmund. In:… Obras psicológicas completas. Edição Standard Brasileira. Vol. IX. Rio de Janeiro, Imago, 1969, p. 149.
  • (2) FREUD, Sigmund. Romances familiares. Op. Cit. Vol. IX.
  • (3) FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneio. Op. Cit., p. 154.
  • (4) Idem, p. 158.
  • (5) LACAN, Jacques. Seminário 9. A identificação. Aula de 29/11/1961, inédito.
  • (6) Em seminário já citado (9), na terceira aula (29/22/1961), Lacan exemplifica essa questão através do seu relacionamento com sua cadela Justine: “O que distingue esse animal falante do que se passa quando o homem fala é, o que é inteiramente digno de nota, o que acontece com minha cadela, uma cadela que poderia ser a sua, uma cadela que não tem nada de extraordinário é que, ao contrário do que ocorre ao homem quando fala, ela não me toma jamais por um outro.”
  • (7) LACAN, Jacques, Idem, aula de 06/12/1961.
  • (8) NAGEL, E.& NEWMAN, J, La démonstration de Gödel, Paris, Seuil, 1989, p.62.
  • (9) FORBES, J. Analisando 88, In: Capítulos de Psicanálise, nº 1; Caminhos lógicos da psicanálise o nome próprio. São Paulo, Biblioteca Freudiana Brasileira, 1988.
  • (10) Parece que Harrison e Paris fizeram algo a esse respeito.
  • (11) LACAN, Jacques. L’Étourdit. Scilicet, nº 4, Paris, Seuil, 1973, p.35.
  • (12) REY, Pierre. Une saison chez Lacan. Paris, Robert Laffond, 1989, p.219.
  • (texto publicado nas Atas das 14as Jornadas de Psicanálise: Desejo ou Gozo – Biblioteca Freudiana Brasileira; São Paulo, 1989, pp. 25 a 40; e na Agenda de Psicanálise – O Corpo na Psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1990, pp. 69 a 73).