/Somos todos adotados

Jorge Forbes

Você foi encontrado na lata do
lixo!

Quem, ao menos uma vez na vida,
tendo irmãos mais velhos, não escutou, angustiado, essa declaração de má
procedência. Se esse insulto pega, se ele atemoriza suas vítimas, se ele é eficiente,
como é, é por tocar em um ponto sensível ao animal humano: a desconfiança da
filiação. Todos nós desconfiamos se realmente pertencemos à família que
portamos no nome e isso porque pensamos que a família é o lugar onde seríamos
compreendidos em nossas dores e desejos, sem mal entendidos. Desde que nascemos
nos contam que Papai e Mamãe são as pessoas que mais nos compreendem, que nem
precisamos abrir a boca e já sabem o que queremos. Um “ai” é dor de ouvido; um
“ei” é sinal de fome; um “ii” é felicidade pura e assim por diante. Então,
quando começam os desentendimentos, em vez de se por em cheque a possibilidade
de compreensão total, o que pensamos é que houve um erro de família. Ora, se
não conseguimos escapar ao mal entendido, não é por erro ou por má vontade, mas
porque ele é inevitável, uma vez que o que dói e o que dá prazer tem sempre uma
carga de inominável.

Essa nossa desconfiança
estrutural provoca a vontade de nos criarmos selos de origem certificada, como
se faz com os vinhos, em árvores genealógicas muitas vezes encomendadas. Tudo
vale para enobrecer o presente capenga em um passado glorioso. Muitos buscam um
artista, um político importante, um milionário, um erudito, um herói, ou melhor
ainda um conde, entre seus antepassados. Tem uma cidade de turismo de inverno
no estado de São Paulo, Campos do Jordão, que adora se apresentar como a Suíça
brasileira – mais um tipo de filiação imaginária – na qual uma loja faz sucesso
vendendo heráldicos brasões a todos os que passam. Ninguém escapa, ninguém leva
bola preta, tem brasão para todo mundo.

Essa tendência do amor à
tradição, mesmo que encomendada e paga – tal qual o burguês fidalgo – deve
aumentar nos tempos atuais. Nossa época, chamada de pós-moderna, quebrou os
padrões de sentido da anterior. Nada mais é como dantes era, do nascimento à
morte, passando pelo amor, pela educação, pelo trabalho etc, nos levando a uma
crise de orientação, a um desbussolamento generalizado, que nos hipertrofia e
generaliza a sensação de “fui adotado”. E para piorar, dando base científica a essa fantasia, os estudos atuais do DNA têm revelado que,
no Brasil, aproximadamente dez por cento das pessoas não são filhas biológicas
de seus pais. Dez por cento é muito, não? Já pensaram? Em uma classe ou em uma festa
de cem pessoas, dez têm outro pai biológico. Santas mães dos céus!

Em decorrência, constatamos uma
febre de pertencer a alguma fraternidade, clube, nicho e semelhantes
agrupamentos. Surgem clubes do vinho, do charuto, de viagem. Dão-se festas
temáticas com roupas uniformizadas. Revistas se dirigem a nichos como o do luxo,
no qual todo mundo se veste igual com a mesma roupa “exclusiva”. Há uma ânsia
de pertencer a uma linhagem, de fazer parte, de ser reconhecido, de garantir um
lugar estável no mundo. O medo está no ar, as pessoas temem que a linha do
celular caia, ou serem deletadas das redes sociais. Mais do que nunca tudo o
que era sólido se desmancha no ar. Pior que nascer na lata de lixo é ser
incinerado vivo e virar cinza sem memória no Outro.

 

(publicado originalmente na revista Gente IstoÉ, junho 2013)