/O amor pede corpo

Jorge Forbes

Ela é perfeita.

Ela é tudo o que aquele homem queria. Uma verdadeira Amélia eletrônica. Ela faz a agenda dele, responde a seus e-mails a tempo e a hora, põe em ordem os seus textos, faz a lista do supermercado com requintes de plano econômico, avisa dos remédios a tomar, dos compromissos. Ela é carinhosa de manhã à noite e, ainda por cima, ela é desligável – fantasia masculina – com um simples toque na tela. Ela é um sistema operacional.

“Ela” é um dos últimos grandes sucessos do cinema, indicado recentemente a cinco Óscares, tendo ganhado pelo
roteiro original.

Simplesmente Ela, pois sendo um sistema operacional, Ela sintetiza todas. Ela é uma mulher completa, ah! as mulheres completas…, e o fascina por isso.

O amor progride entre a mulher toda e o homem carente. As barreiras da estranheza dele, por se ver apaixonado por uma máquina, vão sendo vencidas pela eficiência de Ela. Como trocar Ela por elas? Não, ele fica embevecido.

Mas o amor, como sempre, pede mais e esse mais é o corpo. Encore, en corps, diria Lacan, em trocadilho que realça a homofonia, em francês, de “ainda” com “no corpo”. Ela, sempre brilhante, bola um estratagema para resolver o impasse virtual do amor, do qual eles sofrem. Contrata um corpo de aluguel, na esteira das barrigas de aluguel. Um corpo de aluguel para fazer às vezes dela, junto a ele.

Toca a campainha na casa dele e Ela aparece travestida em uma moça que, fascinada pela história impossível do
amor deles, se oferece a ser comandada por Ela, através de um fone de ouvido, nas artimanhas dos jogos amorosos sexuais, com ele. Claro que não dá certo essa estranha encorporação. Mulheres se tomam uma a uma, mas isso o sistema operacional não sabia.

Frustração dele e dela. Aumentada quando ele descobre o óbvio, a saber, que Ela, naquele momento, estava fazendo
viver o mesmo a mais de mil homens. Imagine ser traído com mais de mil! Só mesmo computador.

Tomando o filme como metáfora, vai aí uma resposta às inquietações dos pais de hoje, ao verem seus filhos de olhos colados nas telinhas eletrônicas. Podem se tranquilizar, a internet não vai abolir o encontro corporal, ao contrário. A multiplicidade de contatos virtuais exaure, cansam por seu aspecto ilimitado. No virtual pode tudo e o pode tudo vai contra o desejo, eliminando-o. Sem desejo as pessoas não se recriam, não se reinventam, viram genéricas, aborrecidas. O ser humano precisa de um corpo. Curiosamente é no encontro dos corpos que nos estranhamos, e não
em sua distância. E esse estranhamento é o que provoca as declarações de amor, tentativas de por em palavras o que sentimos sem saber. O que será que será que não tem nome, nem nunca terá? Pergunta o poeta. A resposta é: o corpo dos amantes é o que não tem nome nem nunca terá, base de todos os cantos.

Parodiando Mallarmé: jamais um sistema operacional abolirá o corpo. Fiquem tranquilos e assistam Ela. É uma boa
inspiração.

Artigo publicado na revista IstoÉ Gente, maio de 2014.