/O periquito do realejo virou genoma

por Jorge Forbes

Há um frisson no ar. Dentro de pouco tempo uma pessoa encontrará nas boas farmácias do ramo testes genéticos que informarão da tendência de alguém ser acometido por uma doença grave. Vocês podem imaginar a paranóia que vai se instalar? Se antes comparávamos o que o papelzinho da sorte escolhido pelo periquito do realejo dizia, agora a coisa parece mais séria, do tipo ninguém escapa, fatal: – “tirei 35% de possibilidade de Alzheimer, e você? Nossa, 58%! Ah, é melhor você já ir se despedindo da sua família enquanto ainda os reconhece”.

As informações genéticas deverão ser interpretadas duplamente: geneticamente e psiquicamente. Geneticamente será fundamental saber como valorizar o achado de uma determinada mutação. Não bastará saber se é grave ou não, pois é necessário saber do grau de manifestação somático daquele determinado distúrbio. Mutações aparentemente graves em si, podem não se manifestar por uma vida inteira, enquanto outras mais leves podem acabar sendo mais problemáticas. Será necessário uma espécie de banco de DNA de idosos sadios, para se tentar inferir, por comparação, a relevância de um achado no exame do DNA. Esses bancos começam a ser construídos.

Do ponto de vista psíquico, estamos também confrontados a um fenômeno totalmente novo: até recentemente as pessoas iam a um médico para saber o que tinha lhes ocorrido. Hoje, cada vez mais, vai-se ao médico para saber o que vai lhe ocorrer. Não é tanto a medicina do futuro, mas a medicina do meu futuro. O curioso é verificar o que ocorre ao se receber um desses diagnósticos futurísticos. Temos uma ampla experiência disso na Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano, da USP, que dirigimos. Uma pessoa entra com pleno vigor na sala, para receber seu teste genético realizado por motivo de ordem de uma doença familiar, como, por exemplo, uma paralisia de membros inferiores, em um irmão mais velho. Se o resultado for positivo, invariavelmente a pessoa que entrou andando muito bem, sai mancando a perna.  É como se na sociedade tivéssemos gavetas de sofrimentos standards, “prêt-à-porter”, prontos para vestir. O enigma que representa aquele resultado de exame: -“Dentro de uns quatro anos o senhor poderá desenvolver uma paralisia progressiva dos membros inferiores” é respondido de imediato com uma reação prêt-à-porter. E não fica só por aí, há o sentimento que vem junto para a pessoa e para a sua família. O paciente, geralmente, é acometido de uma raiva súbita contra seus parentes, especialmente os pais que lhe deram o “gene ruim”, ou contra os médicos que não entendem nada. Depois, essa raiva se transforma em resignação, em um não há nada a fazer, em um “Deus quis assim”. A família, por sua vez, passada a perplexidade, entra na comiseração, na compaixão. Bem mais vício, que virtude, é essa compaixão, sentimento de superioridade e de distância, disfarçado em solidariedade. A junção da Resignação com a Compaixão dá um novo vírus social que batizamos com as iniciais desses dois modos de reagir, a saber: o vírus RC.

É duro tratar dessa compaixão, sem imediatamente não ser visto como um desumano desalmado. Notável, no entanto, é perceber a verdadeira ojeriza daqueles que são alvos desse suposto nobre sentimento tão valorizado religiosamente. Baseados nesse fato, criamos um projeto de pesquisa no Centro de Genoma Humano, já citado, chamado de: “Desautorizando o sentimento prêt-à-porter”. Em vez de oferecermos o sorriso empático e superior de alguém que reconhece a infelicidade dolorosa do outro, convidamos as pessoas a darem respostas mais originais ao que não se sabe, fora da caixa dos sofrimentos padronizados. Temos obtido muito bons resultados com essa perspectiva de trabalho, pois ela age no espaço sempre em aberto entre a determinação genotípica e a expressão fenotípica que se verifica espontaneamente, por exemplo, no comportamento muito diferente de uma mesma alteração genética em dois gêmeos univitelinos. Vale lembrar mais uma citação de Craig Venter, o primeiro homem a decodificar o seu genoma, em entrevista de 13 de abril de 2008, ao jornal O Estado de São Paulo, quando contraria a ideologia cientificista ao afirmar: – “Sim, os seres humanos são animais altamente influenciáveis pela genética, mas são também a espécie mais plástica do planeta em sua capacidade de se adaptar ao ambiente. Há influências genéticas, sim, mas acredito que as pessoas são responsáveis por seu comportamento”. Está aí a palavra chave: “responsabilidade”, que pede para ser aberta em todas as suas acepções. Frente aos testes de genética de farmácia que estão por acontecer, estejamos preparados para saber interpretá-los geneticamente e, às suas reações, psicanaliticamente.

(artigo publicado na revista Psique, nº55, julho de 2010)

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