/O que esperar de um analista?

– a psicanálise e o psicanalista no Séc.XXI; seus desafios e impasses –

 Jorge Forbes

          Perguntei ao diretor da Seção São Paulo da Escola Brasileira de Psicanálise, Luiz Fernando Carrijo da Cunha, que me fez o convite para dividir essa mesa com ele e Sandra Grostein – o que me é um prazer e eu agradeço – o que ele pretendia com o tema: “o que esperar de um analista?”. Ele me respondeu e eu transcrevo: -“ o pano de fundo é a psicanálise e o psicanalista no Séc.XXI; seus desafios, impasses etc. tanto do ponto de vista do exercício da psicanálise quanto da formação do psicanalista hoje”.
        Disciplinado, alinhavei alguns pontos escolhidos que proponho ao debate.
Os desafios da psicanálise hoje não são os mesmos que aqueles de 31 anos atrás que me levaram, junto com Jacques-Alain Miller, a estabelecer o Campo Freudiano no Brasil, fundando, Jacques-Alain e eu, a primeira instituição desse campo no Brasil, a Biblioteca Freudiana Brasileira, iniciadora de uma trajetória da qual essa Escola é herdeira. Era outro momento para a psicanálise e para o mundo. Não se trata aqui de fazer história e, sim, de fazer o futuro, em diferença ao passado, respondendo à questão sobre os desafios e impasses de uma psicanálise em um novo mundo, o de hoje.

Divido meus comentários, arbitrariamente, em três aspectos: para a psicanálise; para o psicanalista; para a formação.

 Para a psicanálise:
Não cabe o discurso guerreiro de cruzadas obscurantistas anticientíficas.
Não há mais centro, em um mundo globalizado o centro está em toda parte. Não há, por conseguinte, um centro da psicanálise.
Não há mais extraterritorialidade. As escolas de psicanálise não podem se comportar como franquias ou autorizadas Lacan.

Para o psicanalista:
Há uma nova clínica que se tem que se decidir nela
O produto do passe, o AE, é analista de sua experiência pessoal ou da Escola?
Há um novo saber fazer do analista cidadão

Para a formação:
Se o tripé clássico da formação: análise pessoal, supervisão e estudos teóricos, continua válido, a eles acrescentaria o método da conversação que por privilegiar o ressoar, sobre a comunicação linear, exige a responsabilidade pessoal, o por de si.

 Passo a desenvolver.

 Para a psicanálise.

A.   Relação com a ciência. Participei de umas jornadas recentes, há quinze dias, mais precisamente, na Escola da Causa Freudiana, em Paris. Nessa, alguns colegas convocavam os psicanalistas para uma nova cruzada anti-ciência. A explicação era que o discurso da ciência quereria aplastar o discurso da psicanálise, haja vista, nesses dias, as repetidas críticas do tratamento psicanalítico dos autistas. Isso me parece equivocado e assim me pronunciei lá. Posso entender esse equívoco de duas maneiras. Uma, imaginária: um grupo se conforta e cerra suas fileiras ao eleger um inimigo externo. Outra, pragmática: possivelmente há quem pense que o real da psicanálise se alcance pelo esgotamento do simbólico. Sendo assim, o avanço do real científico, reforçando o campo simbólico, contrariaria o acesso ao inominável real da psicanálise. Não comparto dessa visão. Parece-me que o desafio atual de nossa clínica é acessar o real que nos interessa, diretamente, pelo gesto – como já tive ocasião de desenvolver em livro: “Da palavra ao gesto do analista”, e não pelo esgotamento do simbólico.
Outrossim, nossa experiência de mais de sete anos na Clínica Psicanalítica do Centro do Genoma Humano da USP desmente que os avanços genéticos calarão as dúvidas humanas, todo o contrário, as multiplicarão, apontando à maior colaboração com os psicanalistas. Tratei desse tema em plenária do último congresso da Associação Mundial de Psicanálise, intitulando minha fala: A Ciência pede Análise.

 B.   O centro está em toda parte. Na pós-modernidade, na sociedade horizontal, não piramidal, não há um centro privilegiado. Isso só aumenta a responsabilidade de cada um, uma vez que a desculpa da língua ou do local de produção tem menos importância que outrora. Isso nos lembra a famosa interpretação de Nelson Rodrigues, quando afirmou que o brasileiro tem complexo de vira-lata, o que equivale dizer que preferimos muitas vezes o conforto do segundo plano, por ser menos cobrado, por levantar menos expectativa. Os exemplos são vários, restrinjo-me a poucos. Ainda se vê anunciar em alguns lugares com o tão pomposo, quanto interiorano título de “conferência internacional”, uma palestra de um não brasileiro. Ora, não seria melhor chamar de conferência internacional a várias pessoas de nações diversas discutindo um mesmo tema?
O mesmo diria sobre uma publicação local de Paris, chamada Lacan Quotidien, que é traduzida em várias línguas e largamente distribuída. Só aplausos para essa iniciativa, mas por que outros cotidianos, de outros lugares, não são produzidos, traduzidos e igualmente distribuídos? Por conforto? Por falta de iniciativa? Por inércia de privilegiar um centro?
Na mesma linha, chamou-me a atenção e cheguei a comentar no congresso da AMP já referido, que não me parece a melhor maneira de conquistar o público americano para a psicanálise, criar um seminário com o título “Seminário Paris – USA”. Melhor seria, no caso, Paris – Nova Iorque, ou França – USA, não é mesmo?

 C.   Extraterritorialidade. É com Lacan que aprendemos a extraterritorialidade da psicanálise. Cabe a pergunta: ainda hoje? Não me parece que um mundo fragmentado corresponda a essa topologia. Vejo que um dos grandes desafios atuais para o psicanalista é se livrar do psitacismo, a utilização do jargão com mais interesse de valorizar o orador, identificando-o como “lacaniano”, do que de comunicar alguma coisa. Muitas vezes as escolas e suas seções dão impressão de quererem ser franquias, autorizadas Lacan. Posso afirmar que esse não era o sonho nem meu, nem de Miller ao criarmos o Campo Freudiano no Brasil. Ora, se o exemplo é caricatural, infelizmente não é menos verdadeiro. A Escola lacaniana, que tanto criticou o fechamento da IPA, não escapa ao narcisismo das pequenas diferenças. Ainda pede melhor reflexão o ocorrido há alguns anos no congresso da Escola Brasileira de Psicanálise em Salvador.  Foi desastroso. Uma das maiores cientistas brasileiras, a professora Mayana Zatz, convidada pela Seção São Paulo da EBP, com passagem e estadias pagas, para assistir por vinte minutos um trabalho do qual participava, no congresso da EBP, foi impedida de entrar. A decisão foi tomada em uma concertação do presidente da AMP, da época, pelo coordenador da AMP-América e pelo então presidente da EBP. Por serem colegas de maior estima e respeito é que devemos aí ver um problema de estrutura e não só de pessoas. Estrutura de franquia, como chamei, que exclui tudo o que for “out of the box”, no pior da burocracia limitante. Alterar esse estado é mais um desafio.

Para o psicanalista.

A.   Clínica do Real. Há uma nova clínica necessária ao Homem Desbussolado, da pós-modernidade. Imenso desafio é revermos ao avesso o que chamamos primeira clínica de Lacan, a clínica simbólica do sujeito do significante, a clínica do sentido a mais, para uma segunda clínica, do sentido a menos, do parlêtre, da primazia do Real, do emprestar consequência. Não se trata, a meu ver, de um pequeno ajuste, de uma continuidade, mas de uma mudança paradigmática, desafio fundamental para os psicanalistas e para as análises de hoje.

B.   O passe. Lembro o que preconizava Lacan em sua proposição sobre o passe: – “E o analista pode querer essa garantia, o que, por conseguinte, só faz ir mais além: tornar-se responsável pelo progresso da Escola, tornar-se psicanalista da própria experiência”. Pergunta: a frase “da própria experiência” se refere a experiência de sua análise pessoal, ou da experiência de Escola? Em debate caloroso, com Guy Clastres, Jacques-Alain Miller insistiu que a frase deve ser entendida como experiência da Escola. Ora, a maioria dos relatos de passe, tem sido das próprias análises. Com variações de convencimento, com soe acontecer, esses relatos têm tido muita importância, por seu aspecto de monstração e de indução analítica. E a análise da Escola? Dela, tem se ocupado mais os AMEs. Temos aqui um interessante campo de reflexão, inclusive sobre a relação AE x AME. Deixo em espera.

C.   Analista Cidadão. O tempo exige, a doutrina psicanalítica é quem está melhor preparada às necessárias leituras de uma época além da orientação paterna, na qual o homem duvida e teme sua própria liberdade. Legitimar o futuro se faz necessário para evitarmos os movimentos reacionários, passadistas, que se apresentam. Aos analistas tomarem a palavra, não só a escuta.

Para a formação.
Não vou falar do clássico tripé: análise, supervisão, teoria, sempre válido.
Só um comentário. Pululam cursos de psicanálise em todos os lugares. A época do real pede outra coisa. Volto ao termo monstração. A clínica se transmite no inefável. Possivelmente conversações sejam o melhor modelo para uma tempo em que o ressoar é mais importante que a mútua compreensão. A desenvolver.

Finalmente, caro Luiz Fernando, volto à sua pergunta e concluo: o que esperar de um psicanalista? Uma análise. 

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 São Paulo, 19 de outubro de 2012

 

(Texto apresentado nas Jornadas  de 2012 da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção São Paulo).