/Um novo tempo: a reunificação do campo psicanalítico

Jorge Forbes

1. A gota d’água

“Ultrapassadas as margens, há um limite.” É uma citação de Lacan utilizada por Jacques-Alain Miller para explicar o seu “basta” de agosto de 2001. A Revista Francesa de Psicanálise – órgão oficial da SPP – Sociedade Psicanalítica de Paris, filiada a IPA – publicou, em junho de 2001, um número especial sobre as correntes contemporâneas da psicanálise. Nela, um artigo de Gilbert Diatkine tratou do lacanismo na França de uma forma bastante questionável, em especial sobre o entendimento da frase de Lacan : “O analista se autoriza por si mesmo”, e sobre a formação do analista na Escola da Causa Freudiana. Jacques-Alain Miller decidiu enviar um curto pedido de resposta a Paul Denis, editor da revista. Um mês depois, recebe a resposta: não, não publicariam qualquer resposta. Em decorrência, e por muito mais, como depois se viu, Miller resolveu convocar o que chamou de “tribunal da opinião pública”, através de cartas abertas dirigidas à opinião esclarecida. No momento em que escrevo este editorial (16/11/2001), seis cartas já foram publicadas, perfazendo um volume de umas cento e vinte páginas, sendo que na sexta, a última até agora, Jacques-Alain Miller explica como entende a sua posição no movimento psicanalítico mundial: a de intérprete; deixo a equivocidade do termo balançar o sentido do termo “intérprete”. E qual a interpretação maior? O campo psicanalítico tende à reunificação.

2. As mudanças

Trato em itens alguns pontos relevantes da mudança ora em curso:

a) Não mais suportar a difamação e a injúria: nota-se até hoje, às vezes por entendimento, outras por vício de profissão, que psicanalistas tendem a não responder a difamações ou injúrias da mesma forma que não respondem, pelo confronto pessoal, a manifestação de transferência negativa de seus analisandos. Pois bem, a atitude de Miller convida a separar claramente as situações, através do conceito de “analista-cidadão” – importante neste e noutros itens – que contesta o mundo à parte reclamado por alguns. Nem sempre um insulto quer dizer outra coisa e tal como o cachimbo do célebre exemplo de Freud, às vezes um insulto é só um insulto e merece resposta adequada no mundo da cidade, daí o analista cidadão.

b) Aproximação com a imprensa: se até então a política do Delegado Geral da Associação Mundial da Psicanálise era de se manter afastado da mídia, salvo exceção, ela passa a ser de abertura para a imprensa, salvo exceção. Uma mudança de 180o.

c) A preferência ao estilo claro: entre lacanianos que não conseguem dizer duas frases que uma não seja de Lacan (o papagaiamento), e outros que lêem Lacan da forma que leriam a Torá, discutindo as alterações do sentido de uma frase conforme a posição de uma vírgula mais para a esquerda ou mais para a direita (a religiosidade), Miller insiste que a clareza na intenção e no vernáculo é superior ao apego à uma suposta correta filiação lacaniana.

d) Dessacralização dos conceitos e dos dispositivos da Escola: nenhum conceito da psicanálise é sagrado, nem nenhum dispositivo da Escola. Se assim não fosse seria impossível o avanço e a reunificação do campo. Os conceitos e os dispositivos são ferramentas de uso e não estações de repouso. Todos estão permanentemente em questão.

e) Levar às últimas conseqüências as múltiplas interferências possíveis da psicanálise no mundo: a psicanálise não tem contra-indicação (Miller), então é hora de pensar suas múltiplas aplicações, as mais conhecidas e as menos. Começando pelo consultório, o hospital, a escola, o campo vai bem mais longe tocando a política (Miller se propõe a fazer a educação freudiana francesa), as organizações empresariais, culturais, etc.

3. O porquê das mudanças

a) Pelo limite das Escolas: as Escolas que hoje compõem a AMP começaram a ser constituídas no início dos anos 80, com a criação da Escola da Causa Freudiana, em Paris (anterior a AMP). Nesses últimos vinte anos foram criadas cinco Escolas entre a Europa e a América Latina. As Escolas existem e, por conseguinte, resistem. O avanço da psicanálise, em equilíbrio com as novas questões que se colocam, ultrapassa o muro das Escolas. O fenômeno do “mutualismo” interpretado por Miller em 2000, como um problema nas Escolas – a brasileira aí se inclui – é paradoxalmente também exemplo de suas existências, a ser tratado de dentro e de fora de seus muros.

b) A necessidade de retorno de Lacan a Paris: vinte anos se passaram desde a morte de Jacques Lacan. Seus discípulos proliferam pelo mundo, dentro das instituições lacanianas mas também fora, nos que se chamam “grupos independentes” ou nas sociedades da IPA. Um lugar em especial apagou o nome de Lacan do cenário analítico: Paris. Ali, onde ele morou, clinicou e ensinou, seus mais próximos fisicamente o esconderam a sete chaves. Não se trata de recuperar Lacan para lhe erigir uma estátua na Praça da Concórdia, ou no Panteão dos heróis franceses, mas de simplesmente parar de escamotear suas contribuições, para melhor ou para o pior, para o elogio ou para a crítica severa, não importa, o que é necessário é um jogo franco com todas as cartas da psicanálise em cima da mesa, sem esconder a carta Lacan no morto. O que está em jogo é suportar o avanço da psicanálise e não a sua acomodação.

c) Pelas alterações na política da IPA: em julho desse ano (2001) assumiu como Presidente da IPA Daniel Widlocher, ex-analisando de Jacques Lacan. É esperada uma simpatia por movimentos de maior abertura nessa grande instituição que preside.

d) Pela depressão epidêmicas dos analistas: os últimos anos do Século Vinte viram os analistas em profunda depressão, não encontrando um futuro para a psicanálise. Tentam especialmente duas saídas “salvadoras”: uns querem recuperar o pior do humanismo dos anos 60/70, levando a psicanálise a se aproximar das tendências “religiosas” ou “filosóficas”, a ponto de “pastores” e “filósofos” começarem a se reivindicar como psicanalistas.  Outros, tão preocupados em fazerem com que os psiquiatras biológicos e os neurocientistas aceitem uma “cientificidade evidente” da psicanálise, tentam provar incessantemente que Freud é pai do Prozac. O movimento de Miller aponta para o lado oposto: a globalização e as enormes mutações mundiais aguardam uma maior contribuição dos analistas, alguns ainda na psicopatologia da vida cotidiana… de 1901.

4. Operação mudança

Alinhavo aos menos quatro itens para falar da operação (sim, tem algo militar) mudança.

a) Quebrar o silêncio entre os analistas: recupero aqui o título do pequeno livro-entrevista “Etchegoyen-Miller” – “Quebra-se o silêncio”. Chega de indiferença e desprezo entre os analistas; não é o pertencer a esta ou aquela instituição que os fazem mais ou menos analistas: Há um novo passaporte no M.C.A. (Mercado Comum Analítico).

b) Convocar a “inteligentsia”: as críticas constantes e confusas ao “Discurso da Universidade” e ao “Discurso do Mestre” acabaram por isolar os analistas da “inteligentsia”, enfraquecendo sua formação, “mediocrisando-a” (Miller, julho de 2000, em Buenos Aires). É importante retomar o convívio da “inteligentsia” (e estar à altura).

c) Diversificar as publicações: Cadernos Jacques Lacan, Ornicar?, Agência Lacaniana de Imprensa, Cartas, Seminários “piratas-oficiais” – são alguns dos títulos anunciados por Miller em setembro, cobrindo uma vasta área de público especializado e leigo, de autores: analistas lacanianos, não lacanianos e não analistas; de distribuição:  internet, livrarias e até, se possível, bancas de jornais; de formatos: livros, cartas, revistas, etc.

d) Colóquios e Encontros: no mesmo espírito das publicações, Miller anuncia várias reuniões entre as quais destaca o Colóquio de Ornicar?, no fim de semana de Carnaval – 8, 9 e 10 de fevereiro de 2001 – no Palácio dos Congressos, em Paris, reunindo analistas de diversas origens.

5. O que é que muda?

O cerne da mudança está em uma nova época para a psicanálise, coerente com o que costumamos chamar do último Lacan, ou da Segunda Clínica de Lacan, a época do “real sem sentido”. A época do “real sem sentido” questiona as análises pessoais (conduzidas linearmente até a travessia do fantasma), multiplica os “verdadeiros finais de análise” (uma mesma pessoa pode ter mais de um final de análise. A explicar, é claro). E, questionando as fronteiras (com sentido) das Escolas, tende à reunificação do campo analítico.

Miller se lança de corpo e alma em uma nova topologia – não linear – borromeana. Vide a lição de estilo que são suas cartas: ele consegue o que se espera de uma análise – amarrar o absolutamente singular – o buraco nas calças de uma neta, com o mais universal de Kant ou de Freud. Toda a seriedade está na série e não no assunto. As críticas ocorrem mas não esmorecem o desejo, como ele diz em sua Carta no 3: “Não é a consciência, é o inconsciente que vota, assim como é o inconsciente que escolhe o seu parceiro-sintoma” – o voto é do inconsciente.

(Publicado na revista Opção Lacaniana n 32, dezembro de 2001).