/A angústia da responsabilidade

Entrevista de Jorge Forbes para a revista DROPS – Rio Claro, publicada em 9 de fevereiro de 2009.

Em um mundo onde os padrões foram quase todos quebrados, o homem não tem mais caminhos preestabelecidos para seguir. Está ‘desbussolado’. Eis que surge a angústia da responsabilidade frente às múltiplas opções que o mundo de vanguarda nos oferece.

Segundo o psicanalista Jorge Forbes, este é um dos dilemas mais urgentes do ser humano no século 21.

Um dos introdutores da psicanálise de Jacques Lacan no Brasil, de quem foi aluno na França entre 1976 e 1981, Forbes afirma que nossa preferência por ‘receitas prontas’ para se ter alegria derivam justamente da idéia errônea de que felicidade é bem que se mereça.

Forbes critica o que chama de alegria prêt-à-porter e diz: “agora, estamos em um mundo onde você tem que se responsabilizar por suas escolhas. Você perdeu a chance de ter desculpas por estar fazendo alguma coisa. Coisas como: ‘estou com você por que eu prometi para o seu pai’ ou, ainda, ‘estou com você para manter nossos filhos’ não faz mais sentido”.

Com a gentileza de quem sabe seu lugar no mundo, Forbes recebeu a Drops para uma conversa em seu consultório em São Paulo. Confira trechos desta entrevista:

É possível perceber-se alegre? Se sim, que nome damos a este estado aprisionado pela percepção do sujeito? 
É importante frisar que nesta pergunta estamos falando de duas coisas: de alegria e felicidade. Acho mais rica a felicidade do que a alegria. A alegria, de um ponto de vista bem genérico, é uma sensação de leveza e de rapidez. Normalmente, alegria e tristeza estão vinculadas à sensação de velocidade ou não e, neste contexto, podem ser percebidas como parte dos processos psíquicos. Processos rápidos dão a sensação de alegria. Um bom exemplo é quando uma pessoa faz ginástica e provoca a liberação de endorfina, que acelera os mecanismos regulatórios hormonais do corpo. Normalmente, a pessoa se sente alegre por causa dessa rapidez. Por outro lado, o que representa a tristeza é a lentidão. Na arte, um dos maiores representantes da tristeza é Hopper (Edward Hopper, pintor norte-americano 1882-1967), onde seus traços com poucos movimentos sugerem lentidão.

Podemos dizer que o Carnaval é uma tentativa de se institucionalizar a alegria? 
O Carnaval é um momento dessa velocidade, onde não se dorme, onde encontramos termos como ‘trio elétrico’ e onde se vende muito energético. Os contatos são rápidos, fugazes, leves. Nos carnavais mais antigos falava-se que as pessoas tinham ‘carta branca’. Isto é, significava que naqueles dias elas não tinham nenhum tipo de vínculo ou âncora e se sentiam ‘livres, leves e soltas’. Esta mística do Carnaval sugere alegria porque os indivíduos sentem-se sem lastro. Porém, ninguém conseguiria ficar todo o tempo assim. Sem este lastro, em um belo momento, o indivíduo sentiria a angústia da falta de identidade em meio a esta rapidez tão mutável. Neste sentido, é necessária uma Quarta-Feira de Cinzas, mesmo que ela não seja, como hoje em dia, a própria quarta-feira. Esse dia é necessário para que a pessoa possa se reencontrar e dizer: “que bom que voltei a ser eu mesmo”.

Muitas alegrias somadas levam à felicidade? 
É importante entendermos que a alegria é uma das manifestações da felicidade. No mundo atual, você tem um apelo muito forte para um tipo de felicidade que chamo de prêt-a-porter. Esse tipo de felicidade tem se tornado muito presente porque há não muito tempo ser feliz ou estar alegre era cumprir aquilo que era esperado de você. Até então, tínhamos padrões preestabelecidos de como ser alegre, de como ser feliz. Hoje, no momento em que o mundo tem seu norte quebrado pelo surgimento de uma sociedade da comunicação, do conhecimento, ligada em rede, quebram-se os conceitos universais e as pessoas se sentem fragilizadas frente à responsabilidade de terem tantas opções para realizar o seu desejo. Neste contexto, muitas pessoas preferem abrir mão de seus desejos mais íntimos e substituí-los por um produto pronto. Um exemplo simples é quando se vai ao restaurante para satisfazer a vontade de comer algo e, diante das possibilidades do cardápio, você se pergunta: ‘será que era aquilo mesmo que queria comer?’.

Em um de seus artigos, você diz que a felicidade não é um bem que dependa do nosso merecimento. O que isto significa? 
A felicidade tem, fundamentalmente, dois aspectos: a felicidade por merecimento e pelo acaso. Aparentemente, a impressão que se tem é que a felicidade por merecimento é superior à felicidade por acaso. Isto porque estamos inseridos em uma moral judaico-cristã que nos convenceu de que para ser feliz você tem de merecer a felicidade. Inseridos neste contexto religioso-cultural, é difícil aceitarmos que a felicidade possa estar onde a pessoa não mereceu. Acredito que essa é uma das coisas mais importantes para se pensar hoje em dia.

O mercado se aproveita dessa desorientação para vender ‘alegrias preestabelecidas’? 
Alegria é um dos melhores produtos para serem vendidos. Alegrias, esperanças e certezas são coisas que hoje se vende muito bem. Em um mundo sem padrões de merecimento, as pessoas sofrem daquilo que chamo ‘desbussolamento’. Digo isso porque nos últimos 30 ou 40 anos sofremos a passagem de um mundo que nos dava critérios que permitiam saber por onde deveríamos ir, por onde cada um de nós podia se garantir. Era um mundo vertical que oferecia padrões bastante rígidos. Tínhamos padrões de família, que informavam o papel do pai; na empresa, sabíamos o papel do chefe; no país, qual era o sentido de pertencer à pátria. Todos estes padrões estáveis ruíram. Na família, não há mais o poder do pai, nas empresas tem-se as fusões e parcerias e o país passou a estar inserido nos mercados comuns. Neste novo contexto, os limites foram quebrados e as pessoas agora têm multiplicidade de possibilidades.

Esta possibilidade de múltiplas escolhas gera angústia?
Sem dúvida. Com elas, muitas pessoas vivem mal porque se angustiam quando tem que optar. Estamos em um mundo onde você tem que se responsabilizar por suas escolhas. Você perdeu a chance de ter desculpas por estar fazendo o que faz. Coisas como: ‘estou com você por que prometi para o seu pai’ ou, ainda, ‘estou com você para manter nossos filhos’. Hoje, não se tem mais necessariamente estas desculpas. Nesse contexto, aqueles que oferecerem um programa preestabelecido que diga que para ser feliz é preciso cumprir tais e tais pontos, encontrará um mercado ávido para essas cartilhas e elas, de uma certa forma, têm nome, são os livros de autoajuda. Diante deste mercado, estou em verdadeira ‘campanha’ contra esses livros (risos).

Neste segmento, os livros de ‘autoajuda corporativa’ parecem ter crescido muito nos últimos anos?
Como as pessoas estão perdidas e a responsabilidade da opção gera uma angústia muito grande, todos aqueles que oferecem um caminho, uma fórmula pronta, um remédio, seja de base química ou ideológica, terão muita aceitação. Tornou-se comum pessoas que se destacaram como ‘líderes de sucesso’, depois que deixam suas empresas, se notabilizarem como gurus corporativos. Chega a ser incompreensível que empresas competentes na produção daquilo que as perpetuam no mercado, para melhorar a ‘qualidade’ do seu pessoal, acabem gerando um ‘estrago mental’ em seus funcionários.

Há muito de religioso nas palestras corporativas? 
Sim. Em síntese, o ser humano ‘desbussolado’ dos nossos tempos tem a sua frente dois caminhos: o ‘reacionário’ e o que chamo de ‘caminho de vanguarda’. Claro que a maior parte prefere o reacionário. Por que? Justamente porque seguir o caminho de vanguarda angustia logo de cara. Esta escolha leva você a ter que inventar seu próprio caminho e se responsabilizar por ele. Noventa e nove por cento das pessoas não querem isso. Elas preferem se ‘religar’, seja por respostas prontas dos livros de autoajuda ou pela escolha de um caminho onde não há dúvidas.

O que caracteriza esta alegria reacionária? 
Ela se resume a ser pret-à-porter e funciona como na construção do desejo por aqueles que te convencem que é ótimo levar seus filhos a passar férias na Disneylândia. No contexto do imaginário, é ótimo passar as férias lá, até o dia em que você vai (risos). Noutro exemplo, é a alegria de uma mulher ao comprar uma bolsa muito exclusiva, até o dia em que ela entra na classe executiva de um voo internacional e vê que todas as mulheres estão com a mesma bolsa. Só de falar no exemplo da ‘exclusividade da bolsa’ todos sabem a que bolsa estou me referindo. De exclusivo ela não tem nada. Essa alegria vendida tem perna curta e dura o tempo de uma dose de uísque ou de caipirinha. Neste contexto, depois do primeiro ‘livro de autoajuda’ se tem uma infinidade de outros derivados dele. É um mercado infindável.

“A psicanálise entende que a angústia é fundamental para o ser humano. Se ela é causa de doenças, é também causa da criação.”  Estes geradores de alegrias são viciantes? 
Sim. Assim que você realiza uma compra, passa a pensar no crediário da próxima e esta alegria se mantém em um grau de ilusão contínua onde a pessoa é levada a se alienar. É como no alcoolismo. O mercado tenta fazer uma distribuição de alegrias prêt-à-porter porque elas são vendáveis. Porém, o mundo está caminhando para um outro tipo de alegria, que é aquela que não vem do merecimento, já que a alegria vendável substitui com muita propriedade este tipo de alegria. Afirmações do tipo: ‘Você merece ter suas férias em Aruba’ tomou o lugar do quadro de honra que você recebia na escola. Por outro lado, há vários autores onde eu quero me incluir modestamente, porque a companhia é bela, como Lacan e Giorgio Agamben, que defendem que felicidade não é bem que se mereça. O Agamben tem uma frase que acho sensacional. Ele diz: “É uma desgraça sermos amados por uma mulher porque a merecemos! E como é chata a felicidade que é prêmio ou recompensa por um trabalho bem feito!”.

Pensar que a felicidade não depende de nenhum merecimento também não nos deixa sem orientação? 
Neste caso, a pessoa se defronta com algo que nenhum de nós consegue escapar. É a responsabilidade frente à própria felicidade. E isto não está escrito em nenhum manual, enquanto que a felicidade prêt-à-porter é um tipo de prática que está inscrita na civilização. Porém, o homem está sempre em desequilíbrio frente à civilização e as maiores alegrias são aquelas onde você, por algum momento, consegue viver além da civilização. O sonho e a magia vão além da civilização. São processos nos quais você diz ‘como é que eu posso suportar tanta felicidade?’. Isto porque este tipo de felicidade, que nasce da surpresa, sempre põe em dúvida a sua identidade, que é calcada na civilização. Então, quando você recebe isto, sim, você se sente perdido.

Existe o medo de não se ter controle sobre a felicidade? 
Os franceses, por exemplo, chamam o orgasmo de petit-mort (pequena morte). Por isto que os amantes no momento de orgasmo se agarram. Não é apenas carinho, se agarram também por que sentem medo de ‘cair’, de se ‘perder’. Uma das frases habituais, e quem já esteve lá sabe do que estou falando, é ‘me segura forte, me aperta’. O ‘me aperta’ quer dizer: ‘estou com uma sensação de enlouquecimento, estou me deparando com uma felicidade pela qual não sei me responsabilizar’.

De que modo a psicanálise pode aliviar a angústia gerada por esta responsabilidade? 
Muitas pessoas vêm fazer análise para enxergar suas dificuldades. É óbvio que enxergar seus problemas é uma parte importante da análise. No entanto, o mais interessante da minha prática não é tanto ver as dificuldades das pessoas, os problemas e seus sintomas, porque os sintomas são sempre solidários. A maior dificuldade das pessoas é suportarem a felicidade que ultrapassa sua própria identidade.

A mulher é mais dependente da alegria prêt-à-porter do que o homem?
Ao contrário, o homem depende muito mais do que a mulher. A mulher é uma grande consumidora deste tipo de alegria: ela é muito ‘infiel’: la donna é móbile. Já o homem é mais fiel, quero dizer, aquele que acredita em Jack Welch, acreditará sempre. A mulher tem um ‘guru’ hoje e outro na semana que vem. A grande dieta que ela descobriu dura uma semana. Na outra, se alguém disser que tem um a melhor, lá vai ela.

No consultório há muitos desesperançados que dependem deste tipo de alegria?
Sim, mas eles vão muitas vezes às ‘disneylândias’ antes de procurarem a análise. Isto é, a primeira opção não é fazer análise. Não tenho nada contra as ‘disneylândias’, apenas sou contra a postura ideológica como elas são apresentadas. As pessoas sempre acham que a divisão subjetiva, a dúvida, constitui um defeito. Então, imediatamente elas tentam uma cataplasma, um tipo de sutura. Quando a sutura não funciona mais, a maioria resolve integrar a dúvida à vida e não mais afasta-la como um vírus a ser eliminado.

Qual a melhor escolha então? 
Acredito que você tem duas possibilidades. Uma é você exercer o seu talento e pagar o preço por ter a coragem de enfrentar a angústia da indefinição. A outra, é você se acovardar frente às múltiplas escolhas e virar um genérico. Temos, de um lado a alegria do talentoso e, de outro a alegria genérica. Cada um deve saber o que merece na vida. Você pode ter a tranquilidade de ser um genérico ou a inquietude do exercício do seu talento. Porque talento todo mundo tem, só que o maior inimigo do talento é a covardia.

E na psicanálise, é possível dissociar a alegria da melancolia, no sentido de fortalecer uma e encerrar a outra?
Há uma grande diferença entre psicanálise e psicoterapia. As psicoterapias promovem o exercício da alegria prêt-a-porter. Elas querem, na maioria das vezes, tirar a angústia das pessoas e acomodá-las em uma falsa harmonia. A psicanálise não quer desangustiar ninguém. Ela entende que a angústia é fundamental para o ser humano. Se ela é causa de doenças, é também causa de criação. Ninguém cria nada se não estiver angustiado.