/Complexo de Cientista

Uma parceria do neurologista Daniele Riva com o psicanalista Jorge Forbes. Artigo publicado no caderno Mais! da Folha de São Paulo de domingo, 11 de julho de 2004.

No caderno Mais! de 20 de junho de 2004 deparamo-nos com uma entrevista de Mark Solms, “precursor” da chamada “Neuropsicanálise”. Solms propõe uma junção ecumênica de paradigmas incompatíveis: a psicanálise e a neurociência.

Apresenta-se como um cientista, compromisso que envolve um investimento intelectual proporcional à complexidade da tarefa. A leitura dos argumentos de Solms provoca uma vivência desagradável de inadequação. Para o neurologista, o desagrado deriva da apresentação do instrumental tecnológico das neurociências à margem do seu campo específico de relevância e como artefato de uma verdadeira mistificação neurocientífica. Além disso, no recente livro “O que é a Neuropsicanálise”, Solms analisa peculiarmente um dos problemas teóricos mais complexos em Neurologia: a controvérsia doutrinária sobre a localização das funções psíquicas. Simplifica esquematicamente o trabalho dos precursores, finalizando com sua admiração pelo neuropsicólogo Alexander Luria, descrevendo-o como um “criptopsicanalista” obrigado pelos “ventos da opinião política” a fazer uma retratação ideológica, escondendo seus pendores pela psicanálise. Entretanto, o caráter seminal da obra de Lev Vigotsky aparece inúmeras vezes em Luria, incluindo a frase filial “este meu trabalho é uma continuação do caminho traçado por Vigotsky”. Solms erra a paternidade.

Para o leitor psicanalista, o desconforto deriva da simplificação e banalização dentro de um projeto francamente reducionista e equivocado, errando duas vezes: no julgamento de que Freud vai mal e na pretensão de se apresentar como seu salvador. Quem, Solms?

Vejamos os argumentos. Solms começa declarando sua admiração por Freud para, logo em seguida, reduzir a pó a sua metodologia ao afirmá-la “subjetiva, desprovida de controle científico e objetividade; no método freudiano é impossível falsear hipóteses, há uma especulação sem verificação”. Curiosamente, os argumentos utilizados por Solms são os mesmos de Karl Popper e Mario Bunge, filósofos da ciência abertamente hostis à psicanálise.
Mais adiante, afirma que os méritos da psicanálise estariam no seu caráter criativo e inovador, o que lhe atribuiria um papel heurístico. É fato que hipóteses não costumam representar o resultado de atividades racionais. A intuição, o devaneio, e mesmo os estados oníricos permitem o aparecimento de hipóteses criativas. O raciocínio científico pode ser decomposto em dois momentos alternantes: um imaginativo e criador e outro lógico-experimental, rigoroso e crítico.

Solms afirma claramente a impotência da psicanálise neste segundo momento, condenada pela suposta falha metodológica a permanecer num círculo fechado de “especulação sem verificação” (sic). Como então teria sido possível criar um corpo doutrinário, no qual todos reconhecem articulação e coerência, somente por meio da especulação desenfreada? A questão não é abordada por Solms. Ele omite que Freud, em inúmeras ocasiões, afirmou a clínica psicanalítica como o local privilegiado da pesquisa, considerando os testes experimentais inadequados e irrelevantes. Freud, além de criar um campo de conhecimento, tinha a convicção de ter criado um método adequado para sua exploração.

Em nosso entender, quando Freud abandona o “Projeto para uma Psicologia Científica” (obra abertamente rejeitada pelo próprio autor e só publicada postumamente) e publica a sua opus magnum, “A Interpretação dos Sonhos” (1900), realiza um corte epistemológico, cria um novo paradigma e, com ele, a psicanálise. Conhecemos e respeitamos as obras que apontam continuidades entre o “projeto” e obras posteriores, mas os elementos de ruptura, para nós, são preponderantes. Com “A Interpretação dos Sonhos”, Freud rompe os vínculos com sua matriz neurológica e aventura-se no desconhecido, armado somente de um método: exatamente o método que Solms despreza. Esta visão simplista nos levaria a pensar que, se Freud tivesse à sua disposição um PET-Scan e uma ressonância nuclear magnética, teria continuado na linha do “Projeto para uma Psicologia Científica” e criado a neuropsicanálise um século antes de Solms…

Ao contrário, observemos a postura de Freud na “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, quando descreve os lapsos. Havia se dedicado com brilho ao estudo dos distúrbios neurológicos da linguagem, tendo escrito, em 1891, uma monografia sobre a afasia, suas formas clínicas e mecanismos. Em nenhum momento Freud mistura conceitos ou mecanismos afasiológicos com os conceitos posteriores de sua psicologia dinâmica. Ele sabia que o nível da função e suas desorganizações (nível neuropsicológico infrapessoal, desprovido de conteúdo semântico) não se articulava com a psicologia motivacional e dinâmica que estava criando.

Solms e seu equipamento poderiam ter servido de ajuda ao Freud estudioso da afasia, mas é quase cômico imaginar instrumentos tecnológicos para investigar lapsos cuja dinâmica foi totalmente elaborada ao nível do sentido. Repetidamente, Solms comete um erro grosseiro ao afirmar que a psicanálise criou o conceito de atividade mental inconsciente. A originalidade de Freud se encontra no uso dinâmico da noção de inconsciente, que já era bastante conhecida em filosofia e psicologia. A abundante literatura atual sobre o inconsciente cognitivo nada tem de comum com o inconsciente psicanalítico. Aliás, a ciência cognitiva tem dificuldades teóricas para ajustar seus modelos à noção de consciência, mas está perfeitamente à vontade com a idéia de atividade mental inconsciente.

A afirmação de que id, ego e superego possam ser localizados no cérebro é tanto engraçada quanto absurda. Para um materialista conseqüente, toda atividade mental se localiza, em última análise, no cérebro, mas é evidente que o modelo freudiano faz referência ao aparato mental e não ao cérebro, o que é uma das decorrências do corte epistemológico já citado. Na última década do século XIX, Freud abandonou o viés localizacionista da Neurologia Clínica: tentar “localizar” os conceitos metapsicológicos parece-nos uma traição à sua herança intelectual.
No caso da chamada Neuropsicanálise estamos diante de um conjunto não estruturado de aproximações e analogias superficiais e abusivas que nem sequer mereceriam a nossa consideração, não fora pela calorosa acolhida de uma comunidade psicanalítica paulista.

Notamos estas peripécias pseudocientíficas como parte das reações atuais de uma espécie humana angustiada por ter perdido as referências identificadoras em que se apoiava até recentemente. Vivemos uma mudança de era. A globalização encerrou um longo período do laço social orientado verticalmente; “pai-orientado”. Estamos ainda esboçando novos conceitos e explorando novas práticas correspondentes a este tempo. Enquanto isso, vemos grassar três tipos básicos de defesa a esta angústia desbussolante: o reacionarismo, o misticismo, o cientificismo. Projetos como o que aqui criticamos, misturam os três aspectos. É reacionário no que retoma o ideário biologizante do positivismo. É místico por enxergar o que não está. É cientificista por querer fazer com que as coisas ditas pareçam verdadeiras.

A psicanálise não necessita deste tipo de ajuda dos enjeitados do novo tempo. Com Lacan, há mais de vinte anos, psicanalistas se ocupam em mostrar a psicanálise para esta nova forma de laço social, que exige estruturações além do Édipo e do binarismo cartesiano. À ética anterior, marcada pelo saber provado e garantido, anuncia-se uma ética sustentada no desejo, ética das conseqüências, da aposta, do risco e da invenção.

Onde estão o espírito crítico, as tradições intelectuais e principalmente a auto-estima? Estarão em níveis tão baixos a ponto de aceitar sem reservas um movimento cuja única “vantagem” seria uma ilusão de legitimidade científica? Afinal das contas: por que os psicanalistas querem tanto ser cientistas? Que não se iludam! A Neuropsicanálise é um cavalo de Tróia que porta um projeto reducionista no ventre. Se ocorrer uma aproximação em alta escala, só restarão cacos analíticos no bucho de uma neurociência ideologizada.

Neurologistas e psicanalistas melhor fazem refinando suas diferenças e se surpreendendo mutuamente.

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