/“Medidas de Natal” (O Estado de São Paulo – 19 de dezembro de 2004)

Jorge Forbes

Ele trocava as etiquetas dos vestidos de sua mãe todos os Natais. Demorou muito tempo para que seus sete irmãos descobrissem a trapaça afetiva do mais velho. Todo ano era a mesma coisa: só ele acertava o manequim correto, número 42. Não havia nada que fizesse sua querida mãe perder o corpinho voleibolista dos seus 20 anos de doce memória: nem o peso da idade, nem a vida sedentária, nem o refinamento gastronômico. Ela, a mãe de todos, bonita e inteligente mulher, desfilava orgulhosa o presente do queridão, o primeiro filho. O único que tinha bom gosto e bom olho, que acertava suas justas medidas, que não comprava aquelas roupas 44, ou 46, que ela nem iria experimentar, pois eram para uma mulher muito mais velha e gorda: a prova estava dada.

O queridão sorria orgulhoso e cínico, feliz pela reafirmação de filho preferido, feliz pela cara abobalhada-raivosa de seus irmãos. Só ele sabia como vestir uma mulher tão especial, a mãe. E o truque era simples, uma banal troca de número, sempre pelo 42, que ele mesmo costurava.

Esta é uma história verídica. Ela conta um dos mais corriqueiros fenômenos que ocorrem nesse tempo natalino: a Expectativa. Expectativa com e maiúsculo, pois diz respeito a fatores fundamentais da identidade: como sou visto, como sou querido, como sou medido. Um mene mene tekel ufarsim, que o profeta Daniel soube interpretar. Se todo ano se renova a possibilidade é porque o erro é freqüente e o acerto é raro: só com truque, como já foi visto. Como esperar que o outro saiba o que eu quero, se nem eu mesmo sei e nem ele sabe o que quer? Não dá, a promessa de briga é certa. Aliás, sob este aspecto e não sob a politicamente correta visão de paz universal na fratria humana, o Natal é muitas vezes festa de briga com hora marcada.

O presente. O presente, em sua dupla acepção de tempo e de objeto que se oferta, espelha a complicação. Não importa o esforço, a busca, a invenção, você está condenado a errar na sua escolha de presente. O máximo que vai conseguir é o ‘quase-isso’. Se o presente for caro, o que vai interessar é se você foi pessoalmente comprá-lo; se for barato, uma lembrancinha respeitando o cinto curto, você vai ser acusado de regulador e ímpio, pois nem no Natal se solta e confia no futuro; se for roupa, ou livro, você será interpretado como aproveitador do Natal, pois roupa você ia mesmo ter que comprar e livro é uma forma sutil de você impor suas preferências intelectuais; se for um vale-viagem, ou restaurante (para não dizer refeição), você vai ser visto como preguiçoso, que só dá presente de papel; se for uma jóia, vão dizer que você está pensando na herança de seus filhos; se for um brinquedo, ou um jogo, invariavelmente você vai comprar o que ele já tinha, ou o modelo ultrapassado, ou, pior, você nem vai comprar, ficando humilhado pelo preço astronômico; enfim, como dizem os franceses, em sua discreta grossura: un bâton merdeux.

Não tem lado bom para se pegar. Melhor retirar-se, diria a etiqueta da prudência, por um compromisso inadiável, antes da abertura dos pacotes, deixando Papai Noel em seu lugar. Afinal, foi também para isso que o inventaram: reclamações, só na Lapônia. Ponha o que trouxe sob a árvore com um bilhetinho simpático e saia de mansinho logo no início da sobremesa. Você já reviu todo mundo – vai ter um ano para lembrar … -, já conheceu os novos agregados, já computou as baixas, já disse quatro vezes: Como cresceu!, outras tantas: Como você (ainda) está bem!, já comeu panetone, peru, porco, fios de ovos, pêssegos e nozes, como no ano passado e nos anteriores, você já se convenceu que no ano que vem tem mais. O presenteado vai encontrar seu bilhetinho e, com sorte, vai suspirar: Puxa, que presente legal e ele nem mais está aqui!

É assim, o presente é sempre de um outro lugar, com etiqueta trocada. Feliz Natal.

(Artigo publicado no Caderno Aliás).