/Sobre as “Agressões Inusitadas” (O Estado de São Paulo, 17 de abril de 2005)

POR QUE DANIELE MATOU EDUARDO

O fenômeno das “agressões inusitadas” é a doença de um mundo que descartou a figura do pai

Fred Melo Paiva

Jorge Forbes é um psicanalista capaz de explicar Lacan citando Fernando Pessoa, Chico Buarque, Drummond, Roberto Carlos. Até Chitãozinho & Xororó. Isso não significa que dê explicações descomplicadas, abraçando a causa, muito em voga, das análises simplórias embora pretensamente profundas. A sorte é que, a cada meia hora de conversa, tem a mania professoral de fazer um breve resumo da ópera, sempre rabiscando figuras geométricas em uma folha de papel. É assim que se entende que Forbes tem uma boa tese: a de que estamos em um mundo completamente novo, no qual pai, mãe, chefe e padre, entre outros ilustres personagens, estão totalmente por fora. A novidade, ele garante, Freud não explica.

Aos 51 anos, Jorge Forbes já publicou dois livros e organizou outros três. Médico psiquiatra, abraçou a psicanálise e foi aluno de Jacques Lacan na Paris da segunda metade dos anos 70. Desde então vive entre São Paulo e a capital francesa. Paulistano, filho de uma elite bem-educada, foi também professor de Lingüística e Semiótica na Universidade de São Paulo. É membro da Escola Européia de Psicanálise e presidente do Instituto da Psicanálise Lacaniana. É um sujeito que ri fácil. Mas fecha a cara para Drauzio Varella, que, segundo ele, “acha que a boa vida depende de comer uma quantidade de sal que não absorva toda a água do organismo”. Contrário a esse pragmatismo fisiológico, Forbes gosta mesmo é de contar que “Darcy Ribeiro mandou desligar os aparelhos do hospital e foi morrer junto das suas namoradas”.

Darcy Ribeiro, no entanto, é da época em que “você tinha de escolher entre Geraldo Vandré e Chico Buarque, entre o DKW e o Fusca”. Fazia parte de um mundo que Jorge Forbes tem deixado para trás, atento ao estudo comportamental das novas gerações. “A globalização pluralizou as possibilidades e as pessoas entraram na angústia da escolha”, analisa.

Perdemos todos os padrões.” Uma das conseqüências disso é o que Forbes chama de “agressões inusitadas” – um fenômeno de violência “gratuita” que teve seu ponto alto na semana que passou, quando veio a público a história do assassinato do analista de sistemas José Eduardo Barcelos Vásquez, a mando da própria filha, Daniele, de apenas 20 anos. Forbes explica:

O que há de novo no comportamento de gente como Daniele Vásquez?
Agressões sempre aconteceram, porém de forma justificada – por necessidade, inveja, fome, disputa, amor. Podemos entender a agressão ao Iraque, ou por que alguém apanha se subir o morro vestindo terno, gravata e Rolex. Ao contrário disso, as agressões inusitadas caracterizam-se pela surpresa, pela falta de compreensão da sociedade e do próprio agressor sobre sua motivação. O primeiro caso do qual tivemos notícia aconteceu quando alguns alunos atiraram em seus colegas, fazendo vários mortos, em Columbine, nos Estados Unidos. Aqui, o caso foi explicado como “coisa de americano”. Acontece que depois houve o atirador do cinema no MorumbiShopping. Disseram que ele tinha ido assistir a Clube da Luta e, “logo”, disparou a arma. Agora, novamente um americano matou colegas de escola e depois se matou. Mas acharam na casa dele uma foto de Hitler, o que “justificou” a ação. São todos casos de grande repercussão. Mas há inúmeras outras histórias que nem chegam a virar notícia. Outro dia fui à delegacia porque o filho de um amigo foi agredido em um restaurante de classe média alta em São Paulo. Ele estava indo embora, descendo as escadas com a namorada, quando um outro jovem se aproximou. Eles não se conheciam. Não havia briga, não havia gangue, não havia bebida. O rapaz tirou do bolso um soco-inglês e deu um murro na cara dele, partindo seu nariz em três pedaços e abrindo sua testa. Uma agressão completamente surpreendente, e muito mais comum do que se imagina. Esses fenômenos tanto mais se alastrarão se continuarmos tratando o assunto a distância. O fato é que a menina de Brasília é um fenômeno inerente e conseqüente à globalização. É um fenômeno que alia quebra de identidade e irresponsabilidade.

Como podemos entender sua atitude?
O pai virou um genérico, esse termo que vem da globalização e define o que não tem uma característica própria. O pai não é mais aquele, não é o intocável – pelo menos para essa pessoa. Então, pôde virar simplesmente um empecilho a ser eliminado, deletado. O pai do mundo industrial perdeu o sentido. Dizia-se que “com pai e mãe não se mexe”. Como se dizia também que “em igreja não se rouba”. Em Minas, as igrejas ficavam então de portas abertas. Hoje são roubadas. O laço social não dá mais ao pai – nem ao padre – nenhuma posição privilegiada.

Esse tipo de crime deixa uma pergunta no ar: como uma pessoa parecida comigo faz isso?
Esse questionamento nos leva a pensar que, se ela fez, também podemos fazer. E o que nos protege de nós mesmos? A sociedade está apavorada frente a isso – não estamos apavorados com a menina de Brasília. Estamos apavorados com a nossa menina de Brasília. O que tem em mim parecido com a menina de Brasília ou com Suzane Richthofen? As pessoas, na verdade, estão auto-apavoradas.

Que mudança a globalização provocou, a ponto de permitir que isso acontecesse?
Tínhamos uma sociedade hierarquizada e vertical, com uma presença muito forte do pai ou do chefe. Essa sociedade não existe mais, o que deixa as pessoas perdidas – isso nos leva a enfrentar novas doenças, obrigando a novas soluções.

Que doenças são essas?
A depressão e as agressões inusitadas, apenas para citar dois exemplos. No caso da depressão, médicos falam na serotonina desregulada. Tudo bem, está certo. Mas por que raios eles não nos explicam qual o motivo de a serotonina ter se desregulado só agora, sendo que ela está no corpo humano desde que o homem é homem? Por que resolveu dar o ar de sua graça só agora? Prefiro outra explicação para o problema: quando o homem perde seu termômetro, ele passa a se medir mal. Então, se você passar pela rua, encontrar um velho amigo e ele der sinais de que não o conhece mais, a primeira coisa que você vai dizer será: “Mas o que eu fiz? Onde eu errei com ele?”. Quando você cumprimenta alguém, faz um ato de demanda de reconhecimento. Quando ele não o reconhece, acontece uma pequena crise de identidade, que você conserta quando pergunta o que fez de errado. É uma historinha banal, mas serve para entender a depressão – ela nada mais é do que a cura para a perda da identidade. Um mau borracheiro, devemos admitir, mas sem dúvida uma forma de consertar.

O que há em comum nos episódios de agressões inusitadas?
São imprevisíveis e inexplicadas pela sociedade a não ser que ela queira se enganar. O próprio agressor pode se assustar com o que fez, e isso não quer dizer que seja uma imoralidade ou uma psicose. Não é tão estranho que a pessoa esteja bem um dia, mate o pai no outro e faça um churrasco na manhã seguinte. Não é tão estranho porque estamos lidando com quebras de identidade, fruto da quebra de padrão. Só se escandaliza com isso quem ainda tem padrão. Além desses pontos, é importante ressaltar que quem as comete é gente igualzinha a gente. Digo isso porque a sociedade se tranqüiliza dizendo que o agressor é o outro: “Agrediu porque não teve educação, não teve comida, não teve berço”.

Essas agressões são um fenômeno exclusivo da classe média?
Curiosamente, os exemplos que temos são saídos da classe média e da média alta. Eu classificaria como um problema de irresponsabilidade das elites. Às vezes, uma pessoa pressionada pela necessidade de sobrevivência pode cometer crimes. Mas esses não são tão inusitados.

Como a sociedade deve lidar com o problema?
Um dos riscos que envolvem as agressões inusitadas é tratarmos o problema com os velhos mecanismos, buscando explicações na falta de educação ou na falta de uma boa estrutura psíquica. Pior, só o Jornal da USP, que anunciava com grande alarde, na semana passada, uma pesquisa sobre o cérebro – e nela ficamos sabendo que, para viver muito e bem, precisamos entender onde estão as marcações da agressividade no cérebro humano. Há dez anos, isso seria visto vergonhosamente. Hoje é enaltecido como progresso. Irão descobrir marcas cerebrais – o passo seguinte será a lobotomia? Ou colocar focinheira nas pessoas? Está lá, no jornal dessa universidade, de história tão respeitável… Também não cabe qualificar os agressores inusitados como neuróticos ou perversos, porque são conceitos que nascem do complexo de Édipo, a teoria freudiana que funciona maravilhosamente em uma sociedade piramidal, onde o pai – ou o saber – estaria no topo. Mas tanto o saber quanto o próprio pai viraram genéricos, ou seja, não são mais padrão para nada. Sem a figura do mestre, o homem “desbussolou-se”. Temos de gerar cultura que nos ensine a viver globalmente.

O que é essa cultura?
É saber que, nessa nova geração, a amizade é um valor fundamental. É perceber, por exemplo, o valor do esporte radical, uma forma boa que os jovens encontraram de enfrentar o tema da morte, antes presente através dos rituais da Igreja Católica. Sobretudo, temos de oferecer à sociedade um renascimento cultural. O Ministério da Cultura deveria ser o mais importante de um país. A economia deveria vir a reboque.

Uma opção a esse renascimento é o retorno a uma sociedade que resgate valores deixados para trás?
Se o laço social está disperso, temos duas saídas. Uma delas é reamarrar esse laço desde fora, criando uma nova onda moralista, à qual sou contra. Então vamos censurar a televisão, exigir que os meninos cheguem mais cedo em casa, que os colégios sejam mais rígidos. Outra saída é ver se não há neste novo mundo alguma coisa que já está se organizando de uma forma que não se esperava. Exemplo: esperava-se que, com a globalização, fosse haver uma febre de promiscuidade sexual. Não houve. Então, quem está organizando isso, se os padrões antigos se tornaram desimportantes? Vai ver que a nova geração sabe se organizar de uma forma diferente da gente.

Como devem se colocar os pais no meio disso tudo?
A partir dos anos 70, ou até antes disso, achou-se que tudo poderia ser compreendido. Isso levou mães a contar sobre seus amantes para as filhas. Pais foram para a zona com seus filhos. Foi um desastre. Pai e mãe têm uma função importante, que é a de representar o impossível, as incertezas que fazem parte da vida. Filhos só vão a festas se os pais deixarem. Pai e mãe foram feitos para ser criticados, e isso faz parte da função deles. Esse enfrentamento é necessário até que o filho consiga construir suas pontes para evitar o impossível. Se os pais não cumprirem esse papel, o filho vai procurá-lo em outras partes. Um exemplo: o filho de um amigo meu ia mal na escola. Ainda assim, e por sentir-se ausente de sua educação, o pai lhe deu um carro. Ele bateu o carro e morreu uma pessoa.

Qual lição nos deixa um episódio como o acontecido em Brasília?
Não vamos passar a mão na cabeça e dizer que ela é louca e não sabe o que faz. Por outro lado, é importante que cada vez mais todo mundo saiba que estamos em um novo mundo. Que este novo mundo vive um tempo de “não saber”. Mas que este novo mundo vai trazer um laço social que, se compreende tragédias, compreende também a possibilidade, por exemplo, de um novo amor. Hoje, se eu estou com você é porque quero estar com você, e não porque devo estar com você. Posso simplesmente me separar – posso deletá-lo da minha vida, porque este é uma amor sem desculpas, que não se dá por causa de filhos ou da idade compatível. Antes, é uma opção pessoal e responsável. Este é um novo mundo que, se trouxe problemas graves, por outro lado prenuncia novo renascimento – iremos observar um aumento de interesse pelo cinema, pelo teatro, pelos livros. Não é por nada que todo jovem hoje conta sua história nos blogs.

(Caderno Aliás, p. J3)