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O futuro na palma da mão

O cenário poderia ser aquele de uma apresentação de banda de rock. Palco imenso, telão, platéia lotada, suspense. Entra em cena um homem vestindo jeans e camiseta, calçando tênis. Na mão, não uma guitarra, mas uma maquineta. Invisível na mão do homem, a maquineta é projetada no telão, começa o show. Não falta o rock. No entanto a estrela é o teclado da super-maquineta que potencializa o poder do ouvido, da voz, do olho e do cérebro, servindo como aparelho de som, de vídeo, de câmara, de telefone e de processador de dados. O mundo cabe na palma da mão de Steve Jobs.

Mudança de cenário. Alemanha, no ano de 1848, provavelmente estamos num boteco de Colônia onde, caneco de cerveja em punho, dois jovens barbudos estão redigindo um panfleto que se tornará famoso como Manifesto Comunista. Os dois são jornalistas da Neue Rheinische Zeitung. Fugiram do destino traçado pelos pais: Karl da chatice de um escritório de advocacia, Friedrich do não menos chato setor administrativo da fábrica do pai. Estão entusiasmados com as chaminés, com os teares automáticos movidos a vapor. Prometeu, o ladrão do fogo dos deuses, está solto! Intuem que a sociedade industrial burguesa vai tomar conta do planeta. Tudo que é sólido desmancha no ar. Acusam também seu lado nefasto: a imundice e a exploração que reina dentro das fábricas. Sonham com a sociedade sem classes, na qual haverá fartura, justiça e felicidade a serem conquistadas pela luta de classes.

Aproximadamente setenta anos depois da publicação do panfleto, em 1917, um intelectual de meia idade russo, enfrentado o frio do inverno próximo tem que tomar uma decisão. Fugitivo de um regime quase feudal e certamente despótico, é líder de um partido clandestino em plena guerra mundial. Os sinais dos tempos estão diante de seus olhos: soldados cansados de guerra, o povo faminto, governos que se sucedem. Wladimir, codinome Lênin, resolve agir e ordenar a revolução. Soldados, operários, homens e mulheres decretam “todo poder aos soviets” e mudam radicalmente o rumo da história. Preparado como quadro marxista, Lênin é carregado pelo projeto do comunismo, dotado com a capacidade intuitiva de captar sabe-se-lá-o-quê e de agir. Dias depois da tomada do poder, debruça-se sobre as tarefas imediatas do poder soviético. É necessário conter a paixão das massas, organizar o Estado, planejar a economia. País atrasado, a Rússia tem que ser industrializada pela União Soviética. Para realizar isso, Lênin apóia-se não em Marx, mas na administração científica do trabalho de Taylor, obra em voga, na época.

Pois a obra de Taylor, a essa altura da história, já tinha inspirado outro homem, do outro lado do mundo. Henry Ford, em 1917, estava produzindo, em sua fábrica de automóveis, nos Estados Unidos, o Modelo T que deveria não somente servir de carro popular, como também, mais tarde, tirar a economia americana do sufoco. Um carro para cada americano. O progresso tecnológico ia garantir o progresso econômico e social.

Cinco homens, quatro lugares, quatro momentos históricos e uma só idéia: o progresso tecnológico dá asas. A humanidade pode deixar de ser escrava da natureza com sua capacidade de invenção tecnológica, política, social. Todos seguem o ideal de Francis Bacon, filósofo do século XVI, para quem o pressuposto da liberdade é o conhecimento. Impor limites à natureza através do conhecimento é o lema da modernidade para cujo pensamento Bacon contribuiu tanto quanto Descartes e Kant. A razão dá autonomia não somente diante da natureza. Ela percorre a história, toma conta do espírito do tempo, manifesto na razão do Estado, como quer Hegel. Inspira a práxis revolucionária, pois permite a tomada de consciência, como dizem Marx e Engels, os jovens barbudos de outrora. A razão capacita a administrar a produção, a sociedade, como querem Ford e Lênin. Ela permite um “andar de cabeça erguida”, uma “esperança”, como projeta o marxista Ernst Bloch. E, last not least, a razão tecnológica permite o gozo fenomenal de um mundo na palma da mão, como demonstra Steve Jobs.

No entanto, o que fazer com o lixo? O que fazer diante da extinção de espécies de animais, diante das calotas polares que estão derretendo, diante do verão em pleno inverno e do inverno em pleno verão? Quem, como indaga Hans Jonas, é capaz de exercer o poder sobre o poder sobre o poder da natureza? Quem se deixa guiar pelo princípio responsabilidade? O que fazer para que haja uma mudança de paradigma, uma mudança em nossa maneira de pensar e agir?

Marx e Engels diriam que só a ação racional comunista possibilitaria essa tomada de poder sobre a sociedade e a natureza de uma maneira planejada e não caótica. Há, como acreditam, uma chance de dimensionar o futuro, os recursos naturais e humanos, de dizer livre- e igualitariamente qual será o destino da humanidade. Haveria a necessidade da ditadura do proletariado, decerto, de colocar o poder nas mãos dos sábios, não necessariamente dos intelectuais. A responsabilidade diante do futuro estaria bem nas mãos dos marxistas, diz Jonas, pois estes possuem virtudes que os liberais, com sua visão centrada no mercado, não possuem: a capacidade de enfrentar as catástrofes com coragem pelo poder concentrado, assumidamente despótico, uma moral que prega a vida simples e o ideal utópico de uma vida digna. Aproveitando as virtudes revolucionárias haveria um princípio esperança ecológico, haveria a chance de mandar às favas as crenças da sociedade industrial num progresso desmesurado. A humanidade poderia desfrutar modestamente as benesses da modernidade. Com as invenções da tecnologia conseguiria-se administrar, ao mesmo tempo, o progresso e os direitos da natureza. Embora a sociedade capitalista também seja forçada a aproveitar bem os recursos naturais, Jonas dá mais crédito ao marxismo, não por último por suas virtudes ascéticas. No entanto, a mão forte do Estado na condução da causa dos homens e da natureza dificulta a cada um se responsabilizar diante da destruição da natureza. Responsabilidade é uma questão do dever diante do postulado da existência de futuras gerações, responsabilidade, para Jonas, é uma questão de moral.

E a psicanálise, qual atitude toma? O que pode acrescentar a Hans Jonas a partir da leitura de Sigmund Freud e Jacques Lacan? Freud dá sua colher de chá aos marxistas, quando admite que a ideologia faz parte da superestrutura das relações econômicas. Mas, pergunta, será que essa é a verdade toda? De jeito nenhum! No super-ego permanece presente toda a bagagem ideológica do passado humano. Tanto o superego, quanto o Id, relutam para ceder à razão, resistem à tomada de consciência. O inconsciente é muito mais vasto que possa captar nossa vã filosofia. Lacan radicaliza Freud, centrando a psicanálise no real, no imprevisível, no acaso e, por isso na ética, na atitude e na responsabilidade diante das decisões que, por mais que sejam refletidas, guardam o desconhecido, o ponto cego, o inusitado.

Lênin que o diga. Jonas o cita como exemplo de quem teve, afinal das contas, que tomar uma decisão solitária, contando com a teoria, a oportunidade e a intuição. Lacan talvez diria que Lênin soube, naquela véspera do 24 de outubro, decifrar os significados, o simbólico, projetar um mundo, no plano imaginário, e enfrentar o real, agindo no que restava de incerto, com a paixão revolucionária, coisas sem lógica, coisas do desejo. Nesse momento da decisão solitária, embora respaldada pelo coletivo, Lênin desencadeou a Revolução Soviética, suas conquistas e seus desastres. Inaugurou o século XX, o Estado provedor, mas abriu caminho para Stalin e sua mão de ferro. A decisão de Ford de produzir carros em série fez outra revolução, tão ambígua quanto a revolução leninista. Mobilizou o mundo e contribuiu para o efeito estufa. A fome e a loucura de Steve Jobs? Decerto fará outra revolução e nos colocará diante de outros problemas, cujo alcance é imprevisível.

O que fazer diante do acaso? Eis uma boa pergunta para nós que vivemos num século, no qual caíram os muros de arrimo concretos, imaginários ou simbólicos. A economia sustentável tornou-se uma causa independente do credo político. São marxista-leninistas chineses que depredam as florestas tropicais africanas em Angola, cegos pelo crescimento industrial sem limites. Do outro lado do mundo, moram os maiores responsáveis pelo efeito estufa, governados por Washington e Bruxelas, Berlim e Paris. Em terras brasileiras avançam as fronteiras agrícolas dia-a-dia para produzir superávit primário. A sobrevivência da natureza e da humanidade é uma questão de quebra de paradigma, uma questão revolucionária que não se realiza sem razão e paixão.

Criatividade, intuição, genialidade e paixão não faltam à humanidade. Quem é capaz de prever a globalização do capital 150 anos antes dela acontecer, de realizar revoluções que mudam radicalmente o curso da história, de chegar à lua, de descobrir os segredos do inconsciente, de fabricar iPhones, sabe tomar atitudes, sabe responsabilizar-se. Colocará, aos que virão, o futuro na palma da mão.